PRIMEIRO SMS
da primeira vez que escrevi um sms
naturalmente não havia rosas da Picardia à roda
nem os gerânios vermelhos das varandas de Lisboa
foi numa estação de metro com a gente
a passar depressa com aquela espécie de passo
de pinguim interceptado que tem a gente com sono e pressa
eu estava sentado num banco revestido a mármore
e os pequenos Calígulas improváveis do meu tempo
passavam sem cessar à minha frente muitos com a cabeça
inclinada para o lado do telemóvel
e no tempo da gente que fala imenso
ninguém falava comigo e passava sem me ver
nem a mim nem ao mundo, cada um com cada um
na sua cápsula autista, na sua cápsula de fado eléctrico
de Lissabona a imensa cidade provinciana que o rio
deixou de levar ao mundo
no écran a rainha Mariza com os seus cabelos curtos de nova diva
e vestida de negro como uma sibila interrompida
meneava-se cantando qualquer coisa em que dizia "povo"
com uma emoção estatisticamente correcta
e eu tentava acertar com o polegar num teclado ridículo
enquanto as letras apareciam erradas num pequeníssimo écran
em que devia estar o mundo e o espaço
mas onde estava só a minha ortografia errada e a sombra
oblíqua de todos os meus polegares perdidos
no dia em que eu escrevi o meu primeiro sms
diante de gente provinda de todos os pontos do Hades
dei-me conta que afinal eu também era um cliente do Hades
um dos únicos com informações clássicas sobre a frequência de tal sítio
e sabedor e ciente do que me esperava: Caronte, Cerbero
e a fuselagem cinza e vermelho do esquife veloz
da moderna barca
assim ao rematar a mensagem esqueci-me
de escrever o meu nome e depois o metro levou-me
a outra estação e subi as escadas com Cerbero
fechando a sua boca no círculo do meu tornozelo
situação clássica, e agora sim, ao ar livre já vendo
os gerânios vermelhos das varandas de Lisboa
Do livro a publicar: Mil estações de metro por segundo
Imagem: Retrato do autor jivarizado pela literatura
1 Comments:
Por favor, qual seria a referência da imagem que ilustra o texto? Embora tenha como referência o bibliotecário de Arcimboldo, me parece ser de outro autor. Tenho interesse em usá-la numa revista publicada online e gostaria de saber se há direitos autorais envolvidos e, caso positivo, como obter autorização. Aguardo um contato pelo e-mail anamdo@gmail.com. Obrigada! Ana Maria Oliveira
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