O DR. TROCA-RIOS
Escrevi esta história, que se desenrola num café normal de uma terra alentejana para perceber a sensação de estranheza de Stephen Hawking a levitar num meio em que a gravidade foi artificialmente reduzida. Deve ser lido com um sotaque americano, de máquina.
O Dr. Troca-Rios estava muito agitado no café debaixo de uma redoma de vidro que agora, depois de tanto a ver, todos achavam perfeitamente natural. Só eu, com este espanto de eterno indígena ainda me admirava sempre que o via. Sentei-me numa mesa próxima, então ele acenou-me e ligou o microfone, enquanto bebia a bica.
- Sabe, o computador vai ser muito mais perecível que a máquina de escrever manual...- disse e continuou - E dentro de uns cinquenta anos vai parecer tão vetusto como elas nos parecem agora. Por isso, dada a nova velocidade das coisas efêmeras vamos ver um enorme hiato no tempo e depois do texto sem autor vai re-emergir o autor em vez do texto.
- Mas não anda a desaparecer o autor desde Mallarmé? Vers le texte final?
Em vez de me responder o Dr.Troca-Rios carregou num botão de um dos três comandos que dispunha. Do alto da redoma de vidro mil fios de tinta azul desceram. O criado do café que por ali passava lançou um olhar distraído e coçou a orelha com o lápis. Uma criança apontou o dedo, extasiada, mas os pais puxaram-na e continuou a andar deixando o dedo atrás, sempre apontado para a redoma.
Assim, graças a essse dedo várias pessoas puderam ver o que ele apontava.
- Está ali um homem muito estranho rodeado de teias de aranha azuis - disse Laura Bateferro, uma rapariga de óculos, muito gorda, com ar de poetisa. Mas ninguém lhe ligou como é costume fazer aos poetas, que acabam a falar sózinhos e por isso escrevem livros que também ninguém lê, excepto um ou outro barbudo de óculos que faz caretas ao lê-lo.
Olhei para o dr.Troca-Rios, estava a tirar aranhas do nariz. Assim que as tirava corriam para cima, para a cúpula da redoma, e formavam um cacho, um ponto negro que se movia e era um nojo.
- Dr.Troca-Rios que forma admirável de exprimir o seu pensamento. Na verdade, os seus maus pensamentos animam-se, tomam formas animais,er... neste caso de insectos - disse eu com a minha culpável tendência para falar demais.
- Nada de especial desde o advento do doutor e bispo Berkekey, a realidade é um produto directo da nossa cogitação mental - disse o dr. Troca-Rios com um suspiro apenado e condescendente, por ter de fornecer pedagogia para as massas.
Depois, suspirou mais outra vez e carregou noutro botão e os fios de tinta azul a pouco e pouco desapareceram. Quanto ao cacho negro de aranhas caiu-lhe no crânio, para dentro de um buraco que ele acabara de fazer girando com o dedo indicador a uma velocidade prodigiosa.
Olhei para ele aterrado. Ele, piscou-me o olho com um esgar prometedor e disse-me - Olhe para o meu Terceiro Olho.
Olhei a medo. Soltei um horrível grito mudo de homem a meio da ponte de Edward Munch (vem em todos os jornais periodicamente na página 5): no lugar do terceiro olho o dr.Troca-Rios tinha um verme. E estava a crescer. A redoma vibrava a cada aumento de cada anel do verme. Em breve dentro da redoma o verme submergira tudo o que dantes era o dr.Troca-Rios.
À roda, o bulício do café continuava normal, ouviam-se as moscas a estalar no mata-moscas, os estalos da tira de pano do invariável graxa zé pardulo, o Lavrador Emiliano Banhas a roncar depois da bica, com a boca aberta e a Lavradora dona laurinda, sua mulher, a fazer um crochet gordinho cor de cera velha. Ouvia-se o deslizar de dedos nas páginas preocupadas do Record e da Bola.
A certa altura do corpo do verme começaram a sair inúmeros pedúnculos. Eram capazes de atravessar o vidro da redoma e era o que estavam a fazer agorea. Dirigiam-se para todos os jornais desportivos abertos e fechados daquele grande café, recortavam as fotografias dos jogadores, e voltavam com a sua presa para trás.
Eu tapava os olhos. Sempre detestei desaparecimentos da realidade, e ainda mais quando a realidade se satiriza a si mesma. Enquanto os leitores de jornais, que de nada se tinham apercebido, viravam as páginas dos seus jornais desportivos, a redoma enchera-se de fotografias de jogadores, coleccionadas ali ao vivo.
Pelas freats dos dedos lancei um olhar cauteloso. O verme estava a encolher. Daí a nada não passava de uma unha negra na testa, no lugar do terceiro olho. O dr. Troca-Rios ligou outra vez o microfone.
- Uma inocente tecnologia para eu poder fazer a minha colecção de cromos - disse quase, como se se justificasse. Depois sempre dentro da redoma levantou-se. Carregou noutro comando, apareceram umas rodinhas por baixo, e o dr. Troca-Rios saiu para a rua, com os ombros sacudidos de riso. Antes de sair por completo da porta a redoma tomou a forma de uma bengala. As rodinhas voltaram para o café e saltaram para dentro de cada jornal desportivo. Ao chegar aos buracos feitos pelas fiotografia ausentes transforamram-se em aranhas e começaram a cozer aqueles buracos até reconsitutir na perfeição cada fotografia.
A mim caíram-me lágrima de emoção. O criado com um ar meio receoso, mas já conhecedor das minhas idiosincrasias disse-me - Sr. Palha, n-aose esqueça que deixou a boca aberta no ar -. Agradeci-lhe efusivamente e depois com muita discrição ergui a mão para apanhar a minha boca e voltar a pô-la no lugar.
Entretanto, o criado moveu-se pelas mesas e ao reparar no dedo apontado que estava no ar agarrou nele e deitou-o para o caixote do lixo.
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