PALAVRAS DE PEÇONHENTA DOÇURA
Partilhar é uma palavra de peçonhenta doçura. Faz parte de inúmeros mantras escuteiros da modernidade. Partilhar afectos, por exemplo. Ao som de tremolos e trinados, grupos de bem intencionados sugerem: vamos partilhar afectos, e imediatamente forma-se, enternecida, com o músculo cardíaco nas mãos, uma pequena seita de encantados com a partilha, os Lucinda-alves daquém e dalém-mar. Partilhamos. logo somos. Não podem ser só por si, só podem ser porque são pelos outros. É este o princípio de base das fraternidades, desde a maçónica às mais maçadas e triviais, como as irmandades cristãs ou sunitas. Mas quem é que disse que as fraternidades não eram duvidosas? Compulsivas. Cheias de pressão dos pares. Autoritárias, sob o disfarce da doçura.
A etimologia da palavra sugere logo fendência, fraccionamento, quebranto. Uma pessoa partilhada, por exemplo, a mim parece logo um daqueles fetos dentro dum frasco de álcool, sem braços, sem pernas, sem olhos - partilhou-os, foi partilhado. Partiram-no.
O partilhar afectos pode dar muita marmelada secundária e dúbia. É bom para experiências transversais e osmóticas de adolescentes à procura-de-si-mesmos. Leva a um indiferenciado de género e de atitude. Mas, em boa verdade, um carro, uma caneta e lá por isso um/uma amante não se partilham.
Entretanto, já nesta campanha para a presidência da Câmara (mas porque razão as cidades não tem um Rei mago?) e vereadores (ainda não percebi o que é veradear) apareceram candidatos com arrebatos líricos do género "vamos partilhar a cidade."
Partilhar a cidade! O pior que aconteceu à cidade de Lisboa foi justamente tê-la partilhado com suburbanos de Almada ao Cacém. Nunca se devia ter partilhado a cidade com suburbanos. Eles com as suas montadas ou monturos metálicos chamados automóveis deram cabo dela. O voto de um suburbano devia valer 1/4 do voto de um lisboeta. Há circunstâncias em que é um dever ser belamente injusto e parcialmente democrático.
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