/* PRIVILÉGIOS DE SÍSIFO 反对 一 切 現代性に対して - 風想像力: O HOMEM QUE RAPTAVA ESPELHOS

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2007-06-21

O HOMEM QUE RAPTAVA ESPELHOS


Trata-se de uma história absurda passada num país atravessado por mil países, o Iraque. Não tem a menor credibilidade e nem sei porque a vou contar. Desde logo se vê que Sedhim Ali, com uma perna a menos, a saltitar pelas ruas cheias de buracos de bombas, não regula bem da cabeça. Mesmo quando há um atentado sucida não se protege, não se defende, continua a saltitar com o seu coxear antigo, empurrando o seu carrinho de mão.
É suicida a maneira como ele continua a avançar. Eu estou admirado como a polícia toda abrigada atrás de um muro de cimento armado ao vê-lo avançar para eles não o transforma em passador. E sorri, um sorriso sem jeito, de adolescente velho, de alguém que continua a sorrir para a câmara enquanto o fotógrafo é decapitado por uma rajada.
Esse espaço entre o sorriso com fotógrafo à frente e o sorriso depois de o fotógrafo ter perdido a cabeça é o seu. Quer-me parecer que a Magnum podia ter captado uma coisa destas, um sorriso entre, um sorriso depois da morte. Mas não se vê muita gente da Magnum por aqui.
No fundo desta rua, a do mártir e profeta Bedouz, há um lugarzinho onde fazem um óptimo café. O dono daquele lugarzinho é um cipriota indefinido, que faz o café à maneira turca em pequenos caldeirões de cobre, lá atrás, numa grelha atirada sobre meio bidão, onde arde carvão.
Recebe-me de braços abertos. Há clientes sombrios, com cicatrizes no rosto, e caras apagadas devido a tanta morte. O sr. Karakoulos pisca-me o olho e diz-me em francês
La Mort efface aussi le visage des vivants. E aponta-me uma mesinha onde está um tabuleiro de xadrez e o meu amigo, chamado Kiriaz, um sírio vestido como um ocidental, com uns sapatos táo engraxados, que é possivel fazer a barba a olhar para eles. Está muito contente porque sabe que vamos jogar não mais uma partida, mas a nossa partida.
Dispomos as peças com aquela forma negligentemente precisa dos velhos jogadores, que sabem que boa parte dos seus dias foi ficando dentro da cabeça do rei e da rainha, nos cascos dos cavalos sem patas do xadrez, no peões de cabeça redonda, como soldados do Cromwell, nos bispos de viseira cortada como cavaleiros, nas torres tiradas de um brasão de fidalgo ibérico.
Dois traços de fumo paralelos anunciam que o café já chegou à mesa. Mais virão. Bedouz sabe os tempos do xadrez, vem espiar a estratégia, e dizer uns hmmms hmmms se a jogada lhe parecer de mestre.
Kiriaz nunca sorri e um dia afirmou que o sorriso punha o homem perto dos anjos, semelhante às mulheres mas incapaz de as conhecer. Mas não se importa com os que sorriem, oferece-lhes o seu rosto que nunca conheceu um sorriso, e demora-se.
Entretanto, Sedhim Ali chega a esta espécie de sucursal poeirenta do Parnaso e pede licença para empurrar o carrinho para dentro, não vá algum ladrão de Bagdad levar-lhe a sua carga preciosa: espelhos. que cintilam ao de leve.
Salam, Salam, vai dizendo. Até se sentar junto de nós num tamborete baixo, com o seu sorriso de depois da morte, enquanto eu troco um cavalo por outro cavalo.
Karakoulos sem sequer se virar pergunta-lhe: "e então Sedhim? como correram as coisas hoje?"
-Raptei dez espelhos no bairro das galinhas francesas - diz Sedhim, com modéstia, baixando os olhos como um "turpinoor".
Eu fico sobressaltado. Parece-me altamente imoral e perigoso. Um homem que rapta espelhos é qualquer coisa de tão aberrante e estranho que nos dá pele de galinha imediatamente e vontade de erradicar aquele espaço caótico que de repente se ergue à nossa frente, uma vertigem onde tudo o que era deixa de ser, deixa de passar com a velocidade dos carretos certos, e entra-se noutro plano inclinado e perigoso das coisas, onde tudo treme e começa a deslizar para a esquerda e para o fundo.
- Mon cher, - diz-me Kiriaz levando-me um bispo, " aqui em Bagdad é preciso ter jeito para ser um quadro cubista. Ou seja, a alma pode estar cosida a uma parte errada da nossa anatomia. Um olho pode estar posto na nuca em vez de estar no sítio certo. E por exemplo os cabelos das mulheres podem-se prolongar, em chamas, até à linha do horizonte."
Com a sua elegância de cisne antigo, Kiriaz bebe mais outro gole enquanto se ouve uma explosão ao longe. E continua:
"Vou-te contar como morreu a mulher do turco Mehmet. diz-me Kiriaz. É uma morte em quatro ou cinco linhas. Ou talvez menos. Tem a precisão de um conto de Borges, a efervescência de uma imagem de Rabelais e talvez a concisão de um hadith. Era de origem italiana, chamava-se Joséphine. Tinha uns peitos abençoados, daqueles que são delicados e gulosos. Estava toda vestida com um kaftan vermelho com bordados dourados que representavam a Fénix. E há quem diga que à alegoria que é a morte nós não nos opomos com outras alegorias igualmente bizarras e deslocalizadas...enfim. Os shiitas de rosto tapado entraram aos berros, com aquela energia pavorosa dos que contam os dias aos outros, e dos que fazem marcas na coronha para manter certa e inflexível a conta dos que abateram. Ela, ao vê-los, levantou as saias e virou-lhes o rabo nu - uma delicadeza! - e disse-lhes: "querem ver uma peida peluda e fedorenta a brincar ao gato e ao lagarto?" Os homens pararam por momentos e ela soltou um traque monumental, digno de um dragão. Depois, furiosos crivaram-na de balas. Mas ela morreu a cantar com uma voz de sereia que enlouqueceu todos os seus assassinos."
Depois Kiriaz virou-se para Sedhim, e perguntou-lhe com aquela negligência exacta, "não é assim, Sedhim Ali?"
Este acenou, sem muito entusiasmo de resto, várias vezes com a cabeça. Vi que tinha um olho muito maior do que o outro.
Kiriaz com o seu enorme cosmopolitismo disse-me, desculpe, e a seguir levou-me um bispo, e disse em tom de confidência:
"Aqui o nosso Sedhim tinha raptado dois espelhos da casa de Joséphine. E ela prometera dar-lhe dinheiro em troca, mas não deu... Logo...aqui o nosso amiguinho subiu à Torre da Mesquita de Omar com um lenço de seda amarela, e ao chegar lá em cima acenou por duas vezes em direcção do Oriente."
Outro gole de café, com aquele género de gestos vagos e perfeitos que condensam o tempo porque captaram toda a atenção e, depois, Kiriaz sacudindo uma mosca, diz também naquele registo de displicência contida:
"E já se sabe como este género de coisas... este tipo de metonímias funciona muito melhor do que os telemóveis ou do que as tretas dos jornalistas, que não sabem nada do Grand Jeu."


(Na imagem a antiga Bandeira do Iraque, antes de Sadham Hussein)