EPITÁFIO DA IGREJA CATÓLICA
D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, ganha o Prémio Pessoa.
Eis o que Pessoa, pela voz de um seu heterónimo pensava da Igreja Católica:
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LES PRIVILÉGES DE SISYPHE - SISYPHUS'PRIVILEGES - LOS PRIVILÉGIOS DE SÍSIFO - 風想像力 CONTRA CONTRE AGAINST MODERNISM Gegen Modernität CONTRA LA MODERNITÁ E FALSO CAVIARE SAIAM DA AUTOESTRADA FLY WITH WHOMEVER YOU CAN SORTEZ DE LA QUEUE Contra Tudo : De la Musique Avant Toute Chose: le Retour de la Poèsie comme Seule Connaissance ou La Solitude Extréme du Dandy Ibérique - Ensaios de uma Altermodernidade すべてに対して
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É preciso que a loucura dos massacres seja extraordinariamente imperiosa para se disporem a perdoar o roubo de uma lata de conserva! - que digo eu? - a esquecer! É bem verdade que não estamos habituados a admirar todos os dias uma imensidão de bandidos com opulência que o mundo inteiro, tal como nós, venera, e cuja existência, desde que a examinemos um pouco mais de perto, se revela um longo crime todos os dias renovado; mas essas pessoas desfrutam de glória, honras e poder, as suas perversidades são consagradas pelas leis, ao passo que, tão longe quanto pode levar-nos a História, tudo nos demonstra que um furto venial e sobretudo de alimentos mesquinhos como côdeas, presunto ou queijo, atrai infalivamente sobre o seu autor o opróbio formal, os repúdios categóricos da comunidade, as penas máximas, a desonra automática e a vergonha sem expiação, e isto por duas razões: em primeiro lugar porque o autor de tais perversidades em geral é pobre e em si próprio este estado implica uma indignidade capital, e em seguida porque o seu acto comporta uma espécie de censura tácita à comunidade. O roubo do pobre faz-se uma maliciosa recuperação do poder individual, está a compreender... Aonde iríamos parar? Por isso, repare bem, a repressão dos delitos insignificantes é exercida em todos os climas e com rigor extremo, não só como meio de defesa social mas também, e acima de tudo, como aviso severo a todos os infelizes para continuarem no seu lugar e na sua casta, mansos, resignadamente satisfeitos por morrer ao longo dos séculos, e indefinidademente, de miséria e fome... No entanto, aos pequenos ladrões até agora restava uma vantagem na República, ficarem privados da honra de usar as armas patrióticas.
[...]
Digo-vos, simplórios, vencidos da vida, escorraçados, espoliados, transpirados de sempre, previno-vos: quando os grandes deste mundo resolvem amar-vos é porque vão transformar-vos em carne para canhão... É o sinal... É infalível. É por amizade que a coisa começa. Luís XIV, esse, que nos lembremos marimbava-se por completo para o bom povo. Quanto a Luís XV, é a mesma coisa. Estava-se a cagar. Não se vivia bem nesse tempo, é certo, os pobres nunca viveram bem mas ao estripá-los não havia a teimosia e a obstinação que encontramos nos tiranos dos nossos dias. Para os pequenos, digo-lhe eu, só há descanso com o desprezo dos grandes que apenas podem pensar no povo por interesse ou sadismo... Foram os filósofos, repare ainda a propósito, que começaram por contar histórias ao bom povo. A ele, que só conhecia o catecismo! Empenharam-se, proclamaram eles, em educá-lo... Ah! Que verdades tinham a revelar-lhes! E das boas! E das fresquinhas! Que brilhavam! De se ficar embasbacado! É isto!, começou a dizer o bom povo, é isto mesmo! É precisamente isto! Vamos morrer todos por isto! Nunca quer mais do que morrer, o povo! Tal e qual. «Viva Diderot!», berraram eles, e depois: «Bravo, Voltaire!» Ao menos eram filósofos! E viva tmbém Carnot, que organiza tão bem as vitórias! E viva toda a gente! Ao menos eram gajos que não deixavam o povo morrer na ignorância e no feiticismos! Mostraram-lhe, eles, os caminhos da Liberdade! Emanciparam-no! Mas não durou! Primeiro saibam ler todos os jornais! É a salvação! Caramba! E isso rápido! Basta de analfabetos! Não pode havê-los! Apenas soldados-cidadãos! Que votem! Que leiam! E que se batam! E que marchem! E mandem beijos! Sob este regime, o bom povo acabou por chegar ao ponto certo. O entusiasmo de ter sido libertado não havia de servir para alguma coisa? Danton não era eloquente por tão pouco. Com alguns berros tão sentidos que ainda hoje se ouvem, do pé para a mão mobilizou o bom povo! Foi o ponto de partida dos primeiro batalhões de emancipados frenéticos! Dos primeiros pobres-diabos votantes e baindeirófilos que levariam Dumouriez a fazer-se esburacar na Flandres! Para o próprio Dumouriez que, chegando demasiado tarde a este pequeno jogo idealista inteiramente inédito, e acima de tudo interessado em carcanhóis, desertou. Foi o nosso último mercenário... O soldado gratuito era novidade... Uma novidade tal que Goethe, tão Goethe como era, ao chegar a Valmy ficou pasmado. Perante aqueles magotes esfarrapados e apaixonados que se davam espontanteamente a estripar pelo Rei da Prússia para defesa da inédita ficção patriótica, Goethe sentiu que ainda tinha muitas coisas a aprender. «A partir de hoje», proclamou tão magnificamente como seria de esperar do seu génio, «começa uma nova época!» Tal e qual! Em seguida, como o sistema era excelente puseram-se a fabricar heróis em série e cada vez menos caros devido ao aperfeiçoamenteo do sistema. Toda a gentes se deu bem. Bismarck, os dois Napoleões, e tanto Barrès como a Cavaleira Elsa. A religião bandeirista substituiu prontamente a celeste, velha nuvem já emurchecida pela Reforma e desde há muito condensada em pés-de-meia episcopais. Antigamente, a moda fanática era «Viva Jesus! Fogueira com os heréticos!» Raros e voluntários, porém, os heréticos... Ao passo que, de futuro, aqui onde nos vêem é com hordas imensas que os gritos: «Morte aos que não matam uma mosca! Aos pãezinhos sem sal! Aos inocentes leitores! Milhões de homens de face voltada ao perigo!», despertam vocações. Os homens que não quiserem assassinar nem deitar as mãos a ninguém, os mal cheirosos pacifistas, agarrem-nos e chacinem-nos! Que os trucidem de mil maneiras e feitios bem desarrincados! Para aprenderem, comecem por arrancar-lhes as tripas do corpo e os olhos das órbitas, e acabem-lhes com os anos de vida porca e abjecta que eles têm! Que os façam finar-se legião por legião, saltar na corda bamba, sangrar, fumegar em ácidos, e tudo para a Pártia vir a ser mais amada, mas alegre e amena! E se lá houver imundos que recusem compreender estas coisas sublimes, só há que fazê-los enterrar imediatamente junto dos outros, não digo isto à letra, claro, mas no fim do cemitério e com o desonroso epitáfio de cobardes sem ideal uma vez que perderam, estes ignóbeis, não só o mágnifico direito a um cantinho de sombra no monumento adjudicatário e comunal erigido aos mortos como deve ser, na álea central, mas também o direito de captar um pouco do eco do ministro que, nesse mesmo domingo, vai urinar à casa do prefeito e depois do almoço fazer uma berratina sobre as campas...
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Se é preciso usar de fraudes piedosas com o povo?
O faquir Bambabefe encontrou um dia um dos discípulos de Cong-fu-tseu, que chamamos Confúcio, e esse discípulo chamava-se Uang; e Bambabefe sustinha que o povo tem necessidade de ser enganado, e Uang pretendia que jamais se deve enganar quem quer que seja; e eis em resumo a sua disputa.
Bambabefe
É preciso imitar o Ente Supremo, que não nos mostra as coisas tais como são; ele nos faz ver o Sol sob um diâmetro de dois ou três pés, não obstante esse astro ser um milhão de vezes maior do que a Terra; ele nos faz ver a Lua e as estrelas deitadas sobre um mesmo fundo azul, enquanto na realidade estão a distâncias diferentes; quer que uma torre quadrada nos pareça redonda de longe; quer que o fogo nos pareça quente, apesar de não ser nem frio nem quente; enfim ele nos cerca de erros convenientes a nossa natureza.
Uang
Isso a que chamais erro não o é absolutamente. O Sol, tal como está colocado a milhões de milhões de léguas além do nosso globo, não é o que vemos. Realmente, nós não percebemos, nem podia deixar de sê-lo, senão o Sol que se grava em nossa retina, sob um ângulo determinado. Nossos olhos não nos foram dados para conhecermos as grandezas e as distâncias; são precisos outros recursos e operações para conhecê-las.
Bambabefe ficou muito admirado dessas proposições. Uang, que era muito paciente, explicou-lhe a teoria da ótica; e Bambabefe, que tinha um certo tino, rendeu-se à evidência das demonstrações do discípulo de Cong-fu-tseu; em seguida reencetou a disputa nestes termos:
Bambabefe
Se Deus não nos engana quanto aos nossos sentidos, como eu pensava, deveis convir ao menos em que os médicos enganam sempre as crianças para o seu próprio bem: dizem-lhes que lhes estão dando açúcar, e na realidade trata-se de ruibarbo. Portanto, meu caro faquir, posso muito bem enganar o povo, que é tão ignorante como as crianças.
Uang
Tenho dois filhos e jamais os enganei; disse-lhes quando estiveram doentes: “Eis um remédio muito amargo, é preciso ter coragem para tomá-lo; se fosse doce vos faria mal”. Nunca admiti que suas amas e seus preceptores lhes metessem medo contando-lhes histórias de feitiçarias; é assim que os criei, como cidadãos corajosos e sábios.
Bambabefe
O povo não nasceu tão feliz como vossa família.
Uang
Todos os homens se parecem; nasceram com as mesmas disposições. Os faquires é que corrompem a natureza dos homens
Bambabefe
Ensinamos-lhes muitos erros, reconheço-o; mas é para o seu próprio bem. Fazemo-lhes crer que se não comprarem nossos cravos bentos, se não expiarem seus pecados dando-nos dinheiro, tornar-se-ão, na outra vida, cavalos de posta, cães ou lagartos: isto os intimida, e então eles se tornam pessoas de bem.
Uang
Mas não percebeis que dessa forma perverteis essa pobre gente? Existem entre o povo, mais do que se pensa, pessoas que raciocinam, que zombam de vossos cravos, de vossos milagres, de vossas superstições, que vêem muito bem que não se irão transformar nem em lagartos nem em cavalos de posta. Que acontece? Elas têm bastante bom senso para ver que vós lhes pregais uma religião impertinente, e não o têm, entretanto, suficiente para se elevar numa religião pura e isenta de superstições como é a nossa. Suas paixões lhes fazem pensar que não existe religião, uma vez que a única que lhes ensinam é ridícula; tornai-vos pois culpado de todos os vícios aos quais elas se atiram.
Bambabefe
De forma alguma, porquanto nós apenas lhes ensinamos uma boa moral.
Uang
Seríeis lapidado pelo povo se lhe ensinásseis uma moral impura. Os homens são feitos de forma tal que querem cometer o mal mas não admitem que lho preguemos. Seria simplesmente necessário não imiscuir uma sábia moral com fábulas absurdas, pois enfraqueceis com vossas imposturas, de que poderíeis vos abster, essa moral que sois forçados a ensinar.
Bambabefe
Como! Julgais que se pode ensinar a verdade ao povo sem a sustentar pelas fábulas?
Uang
Creio-o firmemente. Nossos letrados são da mesma massa que nossos alfaiates, tintureiros e camponeses. Adoram um Deus criador, remunerador e vingador Eles não contaminam o seu culto com sistemas absurdos nem cerimônias extravagantes; e há muito menos crimes entre os letrados que entre o povo. Por que não nos dignarmos instruir nossos operários como instruímos nossos letrados?
Bambabefe
Cometeríeis uma grande tolice; é como se pretendêsseis que eles tivessem a mesma polidez, que fossem jurisconsultos: isso não é possível nem conveniente. É preciso que exista pão branco para os amos e pão negro para os domésticos.
Uang
Reconheço que nem todos os homens devam ter os mesmos conhecimentos; mas há coisas necessárias a todos. É necessário que cada um seja justo, e a maneira mais segura de inspirar a justiça a todos os homens é inspirar-lhes a religião sem superstição.
Bambabefe
É um belo projeto, mas impraticável. Julgais que seja suficiente aos homens acreditar num Deus que puna e recompense? Vós me dissestes acontecer freqüentemente que os mais avisados entre o povo se revoltam contra minhas fábulas; da mesma forma se revoltarão contra vossa verdade. Dirão: Quem me pode assegurar que um Deus pune a recompensa? Onde está a prova? Que missão tendes? Que milagre fizestes para que eu vos creia? Eles zombarão de vós muito mais do que de mim
Uang
Eis o vosso erro. Imaginais que hão de sacudir o jugo de uma idéia honesta, verossímil, útil a toda gente, uma idéia que está em perfeito acordo com a razão humana, por que se rejeitam as coisas indecorosas, absurdas, inúteis, nocivas, que fazem fremir o bom senso.
O povo está sempre muito disposto a crer nos magistrados: quando seus magistrados não lhe propõem senão uma crença razoável, aceita-a de boa vontade; essa idéia é muito natural para ser combatida. Não é necessário dizer precisamente como é que Deus punirá e recompensará; basta que se creia em sua justiça. Asseguro vos que vi cidades inteiras que não tinham outro dogma, e são também aquelas onde mais encontrei a virtude.
Bambabefe
Tomai tento; encontrareis nessas cidades filósofos que vos negarão tanto as penas como as recompenses.
Uang
Deveríeis dizer que tais filósofos negariam ainda com maior vigor vossas invenções; assim nada lucrais nesse ponto. Quando mesmo existissem filósofos que não estivessem em acordo com meus princípios, não deixariam de ser pessoas de bem; não deixariam de cultivar a virtude, que deverá ser abraçada por amor, e não por medo. Mas afirmo-vos que filósofo algum jamais estará plenamente certo de que a Providência não reserve castigos aos maus e recompensas aos bons; porque se eles me perguntarem quem me disse que Deus pune, eu lhes perguntarei quem lhes disse que Deus não pune. Enfim, asseguro-vos que os filósofos me auxiliarão, longe de me contradizerem. Quereis ser filósofo?
Bambabefe
Com todo gesto; não o digais porém aos faquires.
De alguns passos singulares desse profeta e de alguns hábitos antigos
Sabe-se hoje muito bem que não se devem julgar os costumes antigos pelos modernos. Quem desejasse reformar a corte de Alcinos, na Odisséia, tomando como modelo a do grão turco ou a de Luís XIV, não seria bem recebido pelos sábios. Quem reprovasse a Virgílio o haver representado o rei Evandro coberto com uma pele de urso e acompanhado de dois cães para receber os embaixadores, seria um mau crítico.
Os costumes dos judeus de antanho são ainda mais diferentes dos nossos que aqueles do rei Alcinos, de Nausica, de sua filha e do bonacheirão Evandro.
Ezequiel, escravo dos caldeus, teve uma visão perto do ribeirão de Cobar, que se perde no Eufrates.
Não nos devemos admirar de que ele tenha visto animais de quatro faces e quatro asas, com pés de bezerro, nem das rodas que caminhavam por si mesmas e continham o espírito da vida: esses símbolos até agradam à imaginação. Mas vários críticos se revoltaram contra a ordem que lhe deu o Senhor de comer durante trezentos e noventa dias, pão de cevada, de frumento e de milho, coberto de excremento.
— Irra! – exclamou o profeta. – Minh’alma até hoje não tinha sido poluída.
Respondeu-lhe o Senhor:
— Pois bem, eu te darei estrume de boi em lugar de excrementos humanos, e tu comerás teu pão com esse estrume.
Visto não ser absolutamente de uso comer tais confeitos com o pão, a maioria dos homens acha essas ordens indignas da majestade divina. Entretanto, deve-se lembrar que o estrume de vaca e os diamantes do grão mogol são perfeitamente iguais, não só ante os olhos de um ser divino mas também aos do verdadeiro filósofo. Com respeito às razões que Deus poderia ter para impor ao profeta um tal almoço, não nos cabe procurá-las. Basta fazer ver que essas ordens, que nos parecem estranhas, não se afiguraram tais aos judeus.
É verdade que a sinagoga não permitia, no tempo de S. Jerônimo, a leitura de Ezequiel antes da idade de trinta anos. Mas isso porque no capítulo 18 ele diz que os filhos não arcarão com a iniqüidade dos pais e que já não se dirá: os pais comeram raízes verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados.
Nesse ponto ele se achava em contradição com Moisés, que no capítulo 28 dos Números afirma que os filhos sofrem a iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração.
Ezequiel, no capítulo 20, faz ainda dizer ao Senhor ter ele dado aos judeus preceitos que não são bons. Eis por que a sinagoga interdisse aos jovens uma leitura que poderia pôr em dúvida a irrefragabilidade das leis de Moisés.
Aos censores de nossos dias, ainda mais os surpreende o capítulo 26 de Ezequiel: eis como o profeta se arranja para fazer conhecer os crimes de Jerusalém. Ele apresenta o Senhor dizendo a uma moça:
“Quando nascestes, ainda não vos tinham cortado o cordão umbilical, ainda não éreis batizada, estáveis completamente nua, eu me apiedei de vós; depois crescestes, vosso seio se formou, vossas axilas cobriram-se de veios; eu passei, eu vos vi, eu compreendi que era o tempo dos amantes; eu cobri vossa ignomínia; estendi por sobre vós o meu manto; viestes a mim; eu vos lavei, perfumei, vesti bem e bem aqueci; dei-vos um chale de lã, braceletes, um colar; eu vos pus jóias no nariz, brincos nas orelhas e uma coroa na fronte, etc.
“Então, confiando em vossa beleza, fornicastes por vossa conta com todos os passantes... E trilhastes um mau caminho... e vos prostituístes até nas praças públicas e abristes as pernas a todos os passantes... e vos deitastes com os egípcios... e enfim pagastes amantes e lhes fizestes presentes a fim de que se deleitassem com outras moças. O provérbio é: Tal mãe, tal filha; e é isso que se diz de vós, etc.”
Ainda com maior indignação se insurgem contra o capítulo 28. Uma mãe tinha duas filhas que perderam muito cedo a virgindade; a maior chamava-se Oola e a menor Ooliba. “...Oola era louca pelos jovens senhores, magistrados, cavaleiros; deitou-se com egípcios desde a mais tenra mocidade... Ooliba, sua irmã, fornicou mais ainda com oficiais, magistrados e cavaleiros bem parecidos; descobriu sua vergonha e multiplicou suas fornicações. Procurou com arrebatamento os abraços daqueles cujo membro se parece com o de um asno e que expandem a sua semente como cavalos...”
Essas descrições que escandalizam tantos espíritos fracos não significam, entretanto, senão as iniqüidades de Jerusalém e de Samaria; as expressões que nos parecem livres não o eram então. A mesma franqueza aparece sem receio em mais de um ponto das Escrituras. Fala-se freqüentemente em abrir a vulva. Os termos de que elas se servem para explicar o contato de Booz com Rute, de Judas com sua nora, não são desonestos em hebreu, mas se-lo-iam em nossa língua.
Não se usa véu quando não se tem vergonha de sua nudez. Como é possível que se ruborizasse uma pessoa nos tempos passados ao ouvir falar dos órgãos genitais, quando era costume tocá-los àqueles a quem se fazia alguma promessa? Era um sinal de respeito, um símbolo de fidelidade, como outrora entre nós punham os senhores feudais suas mãos entre as dos seus senhores soberanos.
Traduzimos os testículos por coxa. Eliezer pousa a mão sobre a, coxa de Abraão; José pousa a mão sobre a coxa de Jacó. Esse costume era antiqüissimo no Egito. Os egípcios estavam tão longe de ligar à ignomínia coisas que nós não ousamos nem descobrir nem nomear, que conduziam em procissão uma grande figura do membro viril chamada phallum, para agradecer aos deuses a bondade demonstrada em fazer servir esse membro à propagação do gênero humano.
Todos esses fatos provam bem que nossos decoros não são os mesmos dos outros povos. Em que tempo houve entre os romanos maior polidez do que no século de Augusto? Entretanto, Horácio não tergiversou em dizer numa peça moral:
Nec vereor ne, dum futuo, vir rure recurrat(29).
Um homem que entre nós pronunciasse a palavra correspondente a futuo seria considerado um bêbado indecente; essa e várias outras palavras de que se servem Horácio e outros autores nos parecem ainda mais indecorosas do que as expressões de Ezequiel. Desfaçamo-nos de nossos preconceitos quando lermos autores antigos ou quando viajarmos por nações longínquas. A natureza é a mesma em toda parte e os costumes em toda parte diferentes.
Voltaire