tenho um dente cariado e penso em Apollinaire
esta linha nem para presunto fumado
devia ir ao médico e resistir às sereias
a língua volta ao furo e o mundo?
se fosse imóvel como um dente? perfurável?
branco? infinito e imundo?
depois saio para a rua e o sol acaricia-me
não é homem nem mulher : acaricia-me
e não há outro deus para mim: Tarde cheguei
a esta religião sem ninguém, sem altar: sou
um adorador do sol, o sol acaricia-me
e é tudo. nada se passa. não há anjos,
ou por outra, há, mas estão aquém.
Tenho um dente cariado: ó maravilhoso Apollinaire
tu conhecias D. Pedro das Sete Partidas
Um dos nossos Principes a sério
E só tu o levaste a sério e o elevaste
à glória breve de um pequeno poema
Sim vagueio, sou um fauno moderno incógnito,
um fauno do boulevard, que neste momento
está trivializado. A democracia vulgariza
tudo, o seu deus transmissor não foi
a imprensa, o aufklarung, a maçonaria,
a TSF: foi o automóvel. o pópó, a lata
rolante. Se ao menos passasse um bentley
a disparar ao acaso para cada retrovisor
e eu encontrasse o objecto infame perfeito
o estúdio de Willim Blake, entretanto,
atravessado por bulldozers, e por piranhas
estéticas a casa de Almeida Garrettt.
Século de demolições! Idade da tábua rasa.
Idade inerte da multiplicação do mesmo,
tenho um dente furado e lia Apollinaire
quando tu eras uma sereia e me envolvias
de rodopios de polvos, e da tinta negra
que as cachalotas em cio largam no azul
Cáries e azul soberano! Eu largava
cicuta com alguma elegância nos meus
octosílabos. Chegaram os tempos narcisos
e a literatura das mulherzinhas dos dois
sexos. Não posso com o Peixoto e todos
os Tavares. Façam bilros noutos pixéis
Não me apareçam tanto à frente! Que raio!
tenho um dente furado e acho
que as trovoadas são feitas de puro oiro
Tenho direito a dez minutos de imortalidade?
sereno e supreendente, serena surpresa
de ler Apollinaire no metro, aos solvancos
As Estações passam como frutos de um sonho,
Saldanha, Picoas, marquês. Os azulejos
agora são desazulejos. Eu vogo e pairo
sou a electricidade poluída da cidade
Sei coisas detestáveis e triviais,
Pica-me a varíola do inconsciente de Lisboa
sou sete deuses fugidos. Colino-me.
não quero ver mais poetas menores
a não ser de oblíquo a minha imagem
no espelho das tuas chegadas perfeitas
a Belém, onde vamos comer com imenso
empenho queijadas da Suíça entre taças
etéreas de vinho das areias abolidas,
Féerico Apollinaire, que gostavas da guerra
como de um lençol deslumbrante
rasgado pela artilharia. Roubei-te um óbus
ó Almirante. No meu barco cruzo na
bandeira negra uma terceira tíbia
e isto com um dente furado, e a revolta
da língua outra vez morta e despida
mas mesmo assim arisca, impossível
de possuir, sílaba única sibila
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