O sono anestesiado dos supermercados
O supermercado tem um papel de tranquilizante - a luz fluorescente leva as emoções a um grau zero, homogeneiza os produtos, democratiza-os, estão todos banhados na mesma luz leitosa, provinda de uma fonte de luz que funciona como a teta da Grande Mãe Pasteurizada.
Esse leite etéreo homogeneizador por certo não abole por completo a diferença entre os inumeráveis produtos mas abole a sua veemente diferença. Tal como na democracia, nada pode ser explosivamente diferente. No talho do supermercado quase não há orgãos, não se vê sangue - plumas e pelo e uma boa parte dos ossos foram retirados da vista e os homens do talho tem touca branca e uma bata branca que os faz parecidos a médicos e enfermeiros. Tranquilidade: estão ali para "tratar" da carne, para esvaziá-la de miasmas, de dor, de convulsão, de elementos perturbadores. Garantias veterinárias e de "higiene" por todo o lado, a radical diferença da morte foi toda ela relegada para um plano que se deseja inexistente. A "higiene" exorciza a morte, afasta os sobressaltos finais, o olho dilatado e convulso cheio de terror - torna as carnes aceitáveis, pacíficas, arrumadas e cortadas numa ordem geométrica, apaziguante. Transformou-se a carcassa, foi parcelada, reduzida, diminuída, geometrizada. Uma imagem de uma vaquinha num prado verde entre flores ajuda a construir a metanóia final: as vacas estão contentes, sempre estiveram ali para nos ajudar e nós ao mesmo tempo, comendo bocados astralizados dela ajudamos a que a
imagem idilica, o mythos da vaquinha feliz entre flores possa continuar.
Empurrar o carrinho de 4 rodas do supermercado tem diversas homologias estruturais óbvias: está-se a empurrar o carrinho do bebé- Ainda por cima as gerências construiram no carrinho uma cadeirinha para os filhotes poderem viajar no interior do supermercado, e continuarem a ser empurrados. Futurologia do cliente, racionalidade da gestão, o seu filho integra-se nas séries de produtos, viaja no mesmo veículo dos comestíveis. Subtil osmose, o filhote adquire as qualidades dos produtos (e a companhia deles), os produtos elevam-se ao estatuto do filhote.
Será que os filhotes são também comestíveis? Vejamos (ainda no plano das homologias estruturais do carrinho) o carrinho assemelha-se a uma gaiola e para o filhote assemelha-se a um automóvel que ele quase conduz. Mais uma diluição de formas diferenciadas, os corredores sonolentos do supermercados são estradas para os carrinhos. Toda a complexa posturalidade, todas as manobras, ansiedades (ainda que em grau menor) e hesitações de quem procura estacionamento reproduz-se no supermercado. A sociedade moderna: uma procura constante de um lugar no parking? Uma viagem de parking para parking? Uma sucessão não heraclitiana de estacionamentos (com uma condenação anexa: banhar-te-ás sempre nas águas de um parking qualquer que ameaça ser o mesmo). O super-mercado continua a rede de estradas. Ele reproduz o indiferenciado sistemático, a encrase de amorfo, a repetição do idêntico - a tranquilização hipnótica do cliente. Entre um mantra hindu e um supermercado há imensas pontes de continuidade, ambos promovem o sono da razão, suspendem as possibilidades perceptivas e críticas do intelecto - daí talvez se explique a crescente monumentalidade dos supermercados e a sua tendência templo - e a espécie de sono assistido e funcional que ambos induzem.
Esse leite etéreo homogeneizador por certo não abole por completo a diferença entre os inumeráveis produtos mas abole a sua veemente diferença. Tal como na democracia, nada pode ser explosivamente diferente. No talho do supermercado quase não há orgãos, não se vê sangue - plumas e pelo e uma boa parte dos ossos foram retirados da vista e os homens do talho tem touca branca e uma bata branca que os faz parecidos a médicos e enfermeiros. Tranquilidade: estão ali para "tratar" da carne, para esvaziá-la de miasmas, de dor, de convulsão, de elementos perturbadores. Garantias veterinárias e de "higiene" por todo o lado, a radical diferença da morte foi toda ela relegada para um plano que se deseja inexistente. A "higiene" exorciza a morte, afasta os sobressaltos finais, o olho dilatado e convulso cheio de terror - torna as carnes aceitáveis, pacíficas, arrumadas e cortadas numa ordem geométrica, apaziguante. Transformou-se a carcassa, foi parcelada, reduzida, diminuída, geometrizada. Uma imagem de uma vaquinha num prado verde entre flores ajuda a construir a metanóia final: as vacas estão contentes, sempre estiveram ali para nos ajudar e nós ao mesmo tempo, comendo bocados astralizados dela ajudamos a que a
imagem idilica, o mythos da vaquinha feliz entre flores possa continuar.
Empurrar o carrinho de 4 rodas do supermercado tem diversas homologias estruturais óbvias: está-se a empurrar o carrinho do bebé- Ainda por cima as gerências construiram no carrinho uma cadeirinha para os filhotes poderem viajar no interior do supermercado, e continuarem a ser empurrados. Futurologia do cliente, racionalidade da gestão, o seu filho integra-se nas séries de produtos, viaja no mesmo veículo dos comestíveis. Subtil osmose, o filhote adquire as qualidades dos produtos (e a companhia deles), os produtos elevam-se ao estatuto do filhote.
Será que os filhotes são também comestíveis? Vejamos (ainda no plano das homologias estruturais do carrinho) o carrinho assemelha-se a uma gaiola e para o filhote assemelha-se a um automóvel que ele quase conduz. Mais uma diluição de formas diferenciadas, os corredores sonolentos do supermercados são estradas para os carrinhos. Toda a complexa posturalidade, todas as manobras, ansiedades (ainda que em grau menor) e hesitações de quem procura estacionamento reproduz-se no supermercado. A sociedade moderna: uma procura constante de um lugar no parking? Uma viagem de parking para parking? Uma sucessão não heraclitiana de estacionamentos (com uma condenação anexa: banhar-te-ás sempre nas águas de um parking qualquer que ameaça ser o mesmo). O super-mercado continua a rede de estradas. Ele reproduz o indiferenciado sistemático, a encrase de amorfo, a repetição do idêntico - a tranquilização hipnótica do cliente. Entre um mantra hindu e um supermercado há imensas pontes de continuidade, ambos promovem o sono da razão, suspendem as possibilidades perceptivas e críticas do intelecto - daí talvez se explique a crescente monumentalidade dos supermercados e a sua tendência templo - e a espécie de sono assistido e funcional que ambos induzem.
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