.. ESTRANHA GUERRA (As minhas Mémoires d'Outre-Tombe)
Foi uma guerra estranha, com um inimigo indefinido. Lia os mesmos autores que nós, e azulava os cocktails com uma citação de Lao Tzu. Mas a seguir, tal como nós, parecia não preferir Victor Hugo a Maupassant, e Milton a Andrew Marvell. Tivemos que entrar no submarino dos heterónimos, mas aí as coisas podem ser ainda muito mais confusas. Dizíamos que uma só linha de Campos ultrapassa Céline, e este vale mais do que todos os contos de Sartre. Por outro lado, Ezra Pound, gli miglior fabro, o fascista involuntário, é muito mais interessante (Dante ou Lucky Strike? Piero de La Francesca ou Nat King Cole, o globalista?), e grego, no sentido nobre, do que Paul Éluard, essa marca de dentífrico, que os socialismos colocam em destaque nas suas orações à Liberdade, como se tivessem o monopólio dela, devastadíssima palavra. Mas por outro lado há ecos de rebelião eterna em Rimbaud que se fazem em ouro, na liga perfeita de uma espada e de um soneto.
Ambas as partes - mas qual na realidade era a minha?, que apesar de tudo não sou Hamlet - atiraram com os seus cartógrafos um contra o outro. Como era hábito o planeta estava sulcado por linhas imaginárias que o dividiam em áreas de influência. Era antes da era das nano-fronteiras. Não se tinha inventado o globalizador-nebulosa, que confunde as guerras com querelas de imprensa ou de empresa, e mistura a honra com a taxa de juros mais favorável. As placas tectónicas da mente não foram inventadas por Corbusiers preguiçosos. A fusão do osso esfenóide com as galáxias era toda uma história nova que os nossos generais mantinham em segredo. Não queriam que ligássemos o sangue às estrelas. Éramos aconselhados a seguir pelas auto-estradas e a nunca abandonar a linha recta e a segurança. A paz social matava-nos como tordos, e amolecia a nossa virilidade. Já não éramos Vikings corsários, em vez disso, uma espécie de dentistas-comissários, uma raça de bata branca e de cartão de crédito na mão.
O nosso inimigo tinha estudado Pessoa, para compreender a divisão dos portugueses numa legião de egos alternativos, e nós Shakespeare e Maquiavel para compreender como o Poder só se conquista apoiado no sangue. A ambos nos acusavam de ter ficado perdidos dentro de um conto de J.L.Borges. E a refrega foi confusa. Começou numas ilhas que se supõe terem sido parte da antiga e mítica Atlântida. Muitas vezes trocámos de pavilhão, de nome, de passado - em suma, da coesão de uma identidade. Vimo-nos a defender coisas insustentáveis como a opressão dos imbecis pelas Academias Iluminadas e criámos símbolos quase totalitários como o Falcão, o V inscrito na palma da mão, e a Folha de Papoula.
A guerra demorou imensos Verões e Invernos, em que vimos as sequências das luas com indiferença e as nossas naves a afastar-se pelo indecidível.
Por fim as folhas do Outono e a corrupção cairam sobre ambos os campos, e todos se tornaram inimigos de todos até que ficámos, sem excepção, prisioneiros de um tempo simultaneamente áspero e mole, infinitamente moldável, este nosso agora, que não conseguimos entender.
Imagem de D.Afonso Henriques de Castilha, 1º Conde de Gijón e Noroña, que tomou Cascais.
Ambas as partes - mas qual na realidade era a minha?, que apesar de tudo não sou Hamlet - atiraram com os seus cartógrafos um contra o outro. Como era hábito o planeta estava sulcado por linhas imaginárias que o dividiam em áreas de influência. Era antes da era das nano-fronteiras. Não se tinha inventado o globalizador-nebulosa, que confunde as guerras com querelas de imprensa ou de empresa, e mistura a honra com a taxa de juros mais favorável. As placas tectónicas da mente não foram inventadas por Corbusiers preguiçosos. A fusão do osso esfenóide com as galáxias era toda uma história nova que os nossos generais mantinham em segredo. Não queriam que ligássemos o sangue às estrelas. Éramos aconselhados a seguir pelas auto-estradas e a nunca abandonar a linha recta e a segurança. A paz social matava-nos como tordos, e amolecia a nossa virilidade. Já não éramos Vikings corsários, em vez disso, uma espécie de dentistas-comissários, uma raça de bata branca e de cartão de crédito na mão.
O nosso inimigo tinha estudado Pessoa, para compreender a divisão dos portugueses numa legião de egos alternativos, e nós Shakespeare e Maquiavel para compreender como o Poder só se conquista apoiado no sangue. A ambos nos acusavam de ter ficado perdidos dentro de um conto de J.L.Borges. E a refrega foi confusa. Começou numas ilhas que se supõe terem sido parte da antiga e mítica Atlântida. Muitas vezes trocámos de pavilhão, de nome, de passado - em suma, da coesão de uma identidade. Vimo-nos a defender coisas insustentáveis como a opressão dos imbecis pelas Academias Iluminadas e criámos símbolos quase totalitários como o Falcão, o V inscrito na palma da mão, e a Folha de Papoula.
A guerra demorou imensos Verões e Invernos, em que vimos as sequências das luas com indiferença e as nossas naves a afastar-se pelo indecidível.
Por fim as folhas do Outono e a corrupção cairam sobre ambos os campos, e todos se tornaram inimigos de todos até que ficámos, sem excepção, prisioneiros de um tempo simultaneamente áspero e mole, infinitamente moldável, este nosso agora, que não conseguimos entender.
Imagem de D.Afonso Henriques de Castilha, 1º Conde de Gijón e Noroña, que tomou Cascais.
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