O USO DO MUNDO
Clique na imagem
Não sei se estou a ficar google-eyed, e de cada vez que olho para o site meter descarrego adrenalina negativa ou positiva consoante as visitas. Mas num tempo em que a maior parte das pessoas que anda na rua está a falar ao telemóvel como se fala com elas? Por outro lado não tem conta o número de pessoas que recebe uma chamada a meio de um almoço e interrompe o diálogo.
Dantes, Deus tinha o dom da omnipresença, agora é o telemóvel e o sms. Não sei qual deles me desperta mais desdém. Talvez o sms, porque parece mais autista e não emite ruído, nem borbulhas de ar. Também tem qualquer coisa de formiga verbal, ou de formiga a escrever formiga. E causa dó ver um adulto a escrever num quadrinho tão pequeno. É isso também : o tamanho T zero do écran do telemóvel que me irrita. Não dá senão para gestos pequeninos, de bordadeira de crochet, não para um amplo gesto de condutor de orquestra ou de golpe de katana no Kendo. Tudo tem que ser em passinhos pequeninos, em gestos mínimos, e só em digitalizações. Em suma o modus operandi do telemóvel especializa a ponta do dedo, mas não dá largura ao braço.
Depois há duas questões que coincidem no meu reforço alergico ao produto. Primeiro: a questão do material - é plástico, tem o toque não sensual e laboratorial de uma luva de borracha endurecida. O plástico é a menos sensual das matérias, limita logo a pele, cria fronteiras, não autoriza contacto a não ser pasteurizado e liso. A boca do Estado, a boca com que as Finanças nos fala é plástica. Eu creio que há um pacto entre as finanças e os telemóveis: promovem coisas miudinhas, inspecções ao mínimo, prosperam nos gestinhos insectos. Debatem o cêntimo, o formiga.
A segunda questão é a da luminosidade do écran do telemóvel. Tem sempre um ar de pálida luz fluorescente, logo de montra pobre da Roménia, ou de um país em evolução (péssima situação a dos países em evolução: os materiais não são bons nem maus - são medianamente homogéneos, relativamente duráveis e despertam entusiasmo popular - ora nada pior do que as coisas que se tornaram populares). Os países em evolução tem uma fase em que tudo é mediano, mas o pior é que o mediano se eterniza, a fase entra em loophole, fica flipada. Veja-se o caso de Portugal: criou uma modernidade mediana, standard, compulsiva, homogénea, militar, uniformizada. A religião da modernidade que impõe telemóveis, urbanizações fucionais e baratas, dinheiro plástico, ginástica com máquinas, rotundas, e um sistema de controlo de qualidade paradoxal a tudo - paradoxal porque despareceu a qualidade autêntica, e afinal o que se controla e afina de forma perene é a mediania e a normalidade, que afinal é a quintessência da democracia.
No entanto - gosto da palavra tecnognose que instrumentaliza um outro olhar - depois do deslumbramento. sobre os objectos recentes que estão a transformar o nosso quotidiano, ensinando o uso moderno do mundo, um uso do mundo altamente intermediado por uma qualquer máquina digital, que se interpõe, num primeiro momento, como um valor cognitivo acrescentado, mas que depois se revela um verdadeiro gato de Schrodinger. O telemóvel é em princípio dispensável, mas tal como o gato que está e não está lá dentro é indecidível. E ao mesmo tempo é muito útil porque não serve para nada, ou seja, serve precisamente o nada. Está dentro das nossas vidas, mas não lhes acrescenta nada além de uma nova opacidade com aparência ordeira e racional. Parece que comunica. mas como bem viu McLuhan the medium is the message. Não é o facto de o telemóvel servir para comunicar que interessa, é o facto de o ter que importa. O telemóvel. essencialmente, comunica-se a si mesmo. E a verdade é que as máquinas, no fundo, são idiotas úteis, mântricos e repetitivos: computam. É precisamente o único que fazem e mais nada.
A apoteose do mundo técnico é muito comparável à montanha que pariu um rato. Too much ado for nothing. Sabe-se do entusiasmo com que os provincianos e os idosos adoptam as aparências do moderno, e se querem modernos. Num país em evolução a maior parte da população é post-provinciana, o que não quer dizer que seja civilizada de todo. E é post-provinciana por tendência, pressão de grupo e consciência colectiva do rebanho, e também por adesão ao novo conformismo que gosta de se adaptar rapidamente ao novo gesto técnico que lhe é proposto. Por isso, uma rua cheia de gente a falar ao telemóvel, coisa do mais moderno que há, é a coisa mais divertida e absurda e ao mesmo tempo conseguida da modernidade: a tentação da evasão à presença humana directa realizada em directo, a constituição de uma cápsula autista como coroa do quotidianeidade. No fundo, trata-se de aversão camuflada e calculada. No meio dos outros, o ser telemobilizado faz com que os outros sejam projectados a distâncias astrais infinitas. São como emissões de corpos, um horizonte anónimo, não como corpos que são vistos. Como um contínuo aparicional dotado de insignificância.
Sendo assim, uma das funções do telemóvel é tornar inócua e irrealista a presença física e imediata do outro em nome da comunicação com o outro distante no espaço e no tempo. Assim o telemóvel serve soberanamente para a des-realização da iminência do outro, porque se constituiu como uma cápsula autista devorante dos sentidos necessários à captação da interpresença. Alguém se cheira? Pouco ou nada. Alguém se ouve? Ou simplesmente vê? Captam-se segmentos desmembrados e desegmentados de conversas todas num registo de baixa entropia. Vê-se sem ver. Não se cheira. O telemóvel deslocaliza os sentidos: torna-os obsoletos. Por isso é altamente a-sensorial. E o que se diz ao telemóvel (que parece privilegiar a dicção em detrimento de todas as outras possiblidades perceptivas)? Coisas de Sísifo? Não, o que diz massivamente não passa de um trivium, um on, um bavardage leitoso e pantanoso, uniforme como o leite, pastoso como a fala dos histéricos, alelo e hiperdismorfo.
É preciso re-imaginar de todas as maneiras e em todos o sentidos um Sísifo blasfemo da modernidade.
Não sei se estou a ficar google-eyed, e de cada vez que olho para o site meter descarrego adrenalina negativa ou positiva consoante as visitas. Mas num tempo em que a maior parte das pessoas que anda na rua está a falar ao telemóvel como se fala com elas? Por outro lado não tem conta o número de pessoas que recebe uma chamada a meio de um almoço e interrompe o diálogo.
Dantes, Deus tinha o dom da omnipresença, agora é o telemóvel e o sms. Não sei qual deles me desperta mais desdém. Talvez o sms, porque parece mais autista e não emite ruído, nem borbulhas de ar. Também tem qualquer coisa de formiga verbal, ou de formiga a escrever formiga. E causa dó ver um adulto a escrever num quadrinho tão pequeno. É isso também : o tamanho T zero do écran do telemóvel que me irrita. Não dá senão para gestos pequeninos, de bordadeira de crochet, não para um amplo gesto de condutor de orquestra ou de golpe de katana no Kendo. Tudo tem que ser em passinhos pequeninos, em gestos mínimos, e só em digitalizações. Em suma o modus operandi do telemóvel especializa a ponta do dedo, mas não dá largura ao braço.
Depois há duas questões que coincidem no meu reforço alergico ao produto. Primeiro: a questão do material - é plástico, tem o toque não sensual e laboratorial de uma luva de borracha endurecida. O plástico é a menos sensual das matérias, limita logo a pele, cria fronteiras, não autoriza contacto a não ser pasteurizado e liso. A boca do Estado, a boca com que as Finanças nos fala é plástica. Eu creio que há um pacto entre as finanças e os telemóveis: promovem coisas miudinhas, inspecções ao mínimo, prosperam nos gestinhos insectos. Debatem o cêntimo, o formiga.
A segunda questão é a da luminosidade do écran do telemóvel. Tem sempre um ar de pálida luz fluorescente, logo de montra pobre da Roménia, ou de um país em evolução (péssima situação a dos países em evolução: os materiais não são bons nem maus - são medianamente homogéneos, relativamente duráveis e despertam entusiasmo popular - ora nada pior do que as coisas que se tornaram populares). Os países em evolução tem uma fase em que tudo é mediano, mas o pior é que o mediano se eterniza, a fase entra em loophole, fica flipada. Veja-se o caso de Portugal: criou uma modernidade mediana, standard, compulsiva, homogénea, militar, uniformizada. A religião da modernidade que impõe telemóveis, urbanizações fucionais e baratas, dinheiro plástico, ginástica com máquinas, rotundas, e um sistema de controlo de qualidade paradoxal a tudo - paradoxal porque despareceu a qualidade autêntica, e afinal o que se controla e afina de forma perene é a mediania e a normalidade, que afinal é a quintessência da democracia.
No entanto - gosto da palavra tecnognose que instrumentaliza um outro olhar - depois do deslumbramento. sobre os objectos recentes que estão a transformar o nosso quotidiano, ensinando o uso moderno do mundo, um uso do mundo altamente intermediado por uma qualquer máquina digital, que se interpõe, num primeiro momento, como um valor cognitivo acrescentado, mas que depois se revela um verdadeiro gato de Schrodinger. O telemóvel é em princípio dispensável, mas tal como o gato que está e não está lá dentro é indecidível. E ao mesmo tempo é muito útil porque não serve para nada, ou seja, serve precisamente o nada. Está dentro das nossas vidas, mas não lhes acrescenta nada além de uma nova opacidade com aparência ordeira e racional. Parece que comunica. mas como bem viu McLuhan the medium is the message. Não é o facto de o telemóvel servir para comunicar que interessa, é o facto de o ter que importa. O telemóvel. essencialmente, comunica-se a si mesmo. E a verdade é que as máquinas, no fundo, são idiotas úteis, mântricos e repetitivos: computam. É precisamente o único que fazem e mais nada.
A apoteose do mundo técnico é muito comparável à montanha que pariu um rato. Too much ado for nothing. Sabe-se do entusiasmo com que os provincianos e os idosos adoptam as aparências do moderno, e se querem modernos. Num país em evolução a maior parte da população é post-provinciana, o que não quer dizer que seja civilizada de todo. E é post-provinciana por tendência, pressão de grupo e consciência colectiva do rebanho, e também por adesão ao novo conformismo que gosta de se adaptar rapidamente ao novo gesto técnico que lhe é proposto. Por isso, uma rua cheia de gente a falar ao telemóvel, coisa do mais moderno que há, é a coisa mais divertida e absurda e ao mesmo tempo conseguida da modernidade: a tentação da evasão à presença humana directa realizada em directo, a constituição de uma cápsula autista como coroa do quotidianeidade. No fundo, trata-se de aversão camuflada e calculada. No meio dos outros, o ser telemobilizado faz com que os outros sejam projectados a distâncias astrais infinitas. São como emissões de corpos, um horizonte anónimo, não como corpos que são vistos. Como um contínuo aparicional dotado de insignificância.
Sendo assim, uma das funções do telemóvel é tornar inócua e irrealista a presença física e imediata do outro em nome da comunicação com o outro distante no espaço e no tempo. Assim o telemóvel serve soberanamente para a des-realização da iminência do outro, porque se constituiu como uma cápsula autista devorante dos sentidos necessários à captação da interpresença. Alguém se cheira? Pouco ou nada. Alguém se ouve? Ou simplesmente vê? Captam-se segmentos desmembrados e desegmentados de conversas todas num registo de baixa entropia. Vê-se sem ver. Não se cheira. O telemóvel deslocaliza os sentidos: torna-os obsoletos. Por isso é altamente a-sensorial. E o que se diz ao telemóvel (que parece privilegiar a dicção em detrimento de todas as outras possiblidades perceptivas)? Coisas de Sísifo? Não, o que diz massivamente não passa de um trivium, um on, um bavardage leitoso e pantanoso, uniforme como o leite, pastoso como a fala dos histéricos, alelo e hiperdismorfo.
É preciso re-imaginar de todas as maneiras e em todos o sentidos um Sísifo blasfemo da modernidade.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home