O Chateadouro
Ninguém se importa muito com os pobres em Portugal porque isso é demasiado banal, são a maioria e das maiorias não reza a história, muito menos as crónicas da actualidade. Na província em que eu vivo cerca de 60% dos habitantes vive na pobreza. Sua Eminência o Bispo, uma vezita ou outra,lá falará deles, em tom angustiado como convém, autarcas embaraçados farão cabriolas com palavras como limiar da pobreza, salário mínimo, exclusão social. Senhoras gordas vestirão um avental e organizarão uma cantina pelo Santo Natal, darão sacos de plástico cheios de esparguete barato. As Misericórdias pintarão as paredes de branco, relva plástica no jardim, para animar a vista aos terceiridosos. Bons corações, abrirão os zippers da carteira e deixarão pingar uns cêntimos. Normais procedimentos das consciências incomodadas, o país está a salvo.
Os pobres, de facto, não tem partido. O PCP representa o proletariado, e o protelariado (bela gralha!) goza de diversos serviços e regalias. Dentadura, reforma, dois carros, telemóvel, casinha própria, férias no algarve. O proletariado já não é pobre, apenas remediado. É classe baixa, troca os verbos, fala esquisito, descai-se no palavrão, ou fala como um doutor,com "vocábulos," mas não é assim tâo baixa, é baixa alta alta. De resto as subdivisões maiores em Portugal são na classe baixa.
Enfim, não é isso que nos preocupa agora. O que nos interessa é responder à pergunta: como se chateiam os pobres?
A classe média baixa e média média encontrou maneiras instrutivas de se chatear- passeia o seu tédio por shopping centres, ou reune-se à volta do seu novo carro e depois de passar horas a espadmirá-lo, procede a limpezas intermináveis do carro. Um carro é um objecto que nunca está limpo. Há sempre um resto de lama, de pó, de caca de cão, de asa de traça,algures. Diligentes, eternas e esforçadas limpezas de carro, com uma parafrenália de aspiradores, escovinhas, esponjas, detergentes, formam parte de um chateadouro ocupacional de primeira classe que movimenta largos blocos de fins de semana familiares.
A classe alta média alta, manda o chófer ou a criada limpar o carro, chateia-se nos seu condóminos com segurança à porta, com piscina, com putos a ler Raskolnikiov e a cortar ecstasy. Depois faz visitas aos outros habitantes do condómino, e fica à vontade porque tirando um ou outro pormenor tudo é igual à sua casa. Os mesmos Gonçalos abrem a porta, discretas Mafaldas pegam nos sobretudos. Toda a gente é tio ou tia uns dos outros.
A classe alta alta, que inventou as tias, para chatear a classe média e, por propagação e contágio, as outras, chateia-se com mais estilo, viajando para as novas Nices e Montecarlos, e aprende a chatear-se com os árabes que enchem agora aqueles lugares que dantes estavam cheios de príncipes do Gotha e de boiardos, com alguns discretos aga khans pelo meio, uns milionários americanos e um que outro turbante. Continua a dar alimento a crónicas damásicas, pró e contra,em que com desencantada empatia nos revemos, e troçamos, o chic do desencanto e do eterno enfado não passa de moda. A luneta, o monóculo bem afiado também estão sempre "dans l'ordre du jour" e assim também nunca passam de moda. A bengala de castão tem avatares, bem como o chapéu panamá e o fato de linho branco. Há tempo de poder voltar a ler Tugerniev mas não se faz. Gore Vidal, mas está mal traduzido. Enfim, onde há tempo e lazer e discreto charme de ter a barriga tratada, os carros pagos, o iate a postos e solícitos accionistas, os sentimentos refinam-se, as intrigas amorosas desenvolvem-se, aguçam-se os complots sexuais, apura-se a orgia e sem se comer melhor, lá se vai comendo. A vista para o mar, e verdade, tem arames de cada lado, não vá o novo democrata, o penetra, o arrivista, penetrar nos domínios brilhantes.
Tudo muito bem, esteja-se descansado, não há novidade de maior nessas áreas de todas essas classes. A chatice está de boa saúde e recomenda-se. Resta saber é como se chateiam os pobres? Em todas as classes o chateado solitário, de qualquer classe, é uma avis rarissima. Só se tiver lepra, sida, uma coisa contagiosa, um fedor que afasta os próprios fedorentos. As pessoas, temerosas da solidão, congregam-se para se chatear numa roda de amigos, de colegas, de família. Muitos chateados juntos aprofundam a coisa, dão-lhe uma certa unidade social, formatam-na em pilar do bem estar, ou pelo menos da continuação da serena apatia.
Estando a família pela ruas da agrura, reduzida ao núcleo egoísta da família nuclear, no entanto, ainda parte dela é disfuncionalmente funcional. O fantasma dos avós é uma égregora resistente, que ainda conjuga os restos das famílias em marcha rápida para a unidade autista da família nuclear. Meninos de cara lavada em lágrimas depois de sair dos carros onde estavam amarrados a cadeiras do código,são amarrados no carrinho de rodas, ou então mantidos com trela curta, por pais mais alarmistas do que alarmados, especializados em gritar "Para Aí Não!" e "Olha que Cais!"Nunca, é certo, se viu tanto menino amarrado. É mesmo a era do menino bloqueado, amarrado. Fazem muito bem. Dá segurança. É para o habituar a estar quieto, sentado, colectivo, cooperativo, sentado diante de um computador, de uma secretária, de uma mesa de briefing, de um conselho de administração. Nada cá de meninos à solta porque a horda de casapianos ataca em qualquer esquina.
Enfim, depois de viverem amarrados a uma série de cadeiras do código os miúdos passam a outros exercícios práticos de chatice. Iniciam-se na nobre arte da chatice em segundos andares com rede de galinheiro nas varandas. Se não são segundos andares são vivendas da antiga pequeno burguesia, tipo bairro social, onde vivem alguns pequeno-ricaços que expulsaram os pequeno-burgueses que anteriormente tinham expulso os operários, porque no entender de todos eram casas "boas demais" para os operários. Esses chateadouros de infantes são justamente chamados infantários, embora de certeza nenhum Infante Real, actual ou futuro, virá lá pôr os pés reais. Seja como fôr,há quem,sempre na corrente da modernidade, lhes queira com toda a justeza, e inserção social, chamar-lhes Chatiários de infância.
Mas deixemos as crianças com o seus flautistas de Hamelin, especialistas em tosquiar-lhes o miolo, e adaptá-lo ao milhões de papeladas, de normas civis, de protocolos de Windows, que terão de preencher, e voltemos à vaca fria, aos pobres.
Os pobres, esses espertos ou espectros segundo Raul Brandão - a necessidade faz o génio - encontraram uma maneira grátis de se chatear. Aqui no meu torrão adoptivo, juntam-se aos magotes diante de sítios interessantes como bombas de gasolina, encruzilhadas e coisas no género e sentam-se à beira da estrada, em bancos de madeira improvisados. Um bidon pequeno daqui outro dacolá, táboa por cima, e ficam a ver passar os automóveis o dia inteiro.
Esta forma de se chatear bate a meu ver o novel "Club for Bores", em Nova Iorque. Um sítio todo pintado de cinzento, com móveis cinzentos onde cavalheiros vestidos de cinzento vão lá, não para ler o New York Times, the Book Review ou mesmo o Star Ledger. Mas tão só e apenas para ficarem calados, desfrutando durante longas e aborrecidíssimas horas os prazeres obscuros da eterna chatice.
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