A ÁGUA DA TORNEIRA EM LISBOA
Dizia Giacomo Casanova que as cidades que ficam junto da água são muito mais libertinas do que todas as outras. Dava algumas razões vagas, heraclitianas- as águas e a libertinagem são impermanentes. Sem querer desafiar o ilustre libertino, eu diria que as águas são uma "fausse naive", de aspecto cândido e dignas de entrarem no balouço, ao lado de uma delicada menina de Watteaul, que anda nos ares pendurada de um sólido carvalho, com vista sobre um bosque de mimosas. Mas o meu tema agora é menos elevado, mais prosaico. Queria falar das águas de Lisboa, justamente as que saiem da torneira.
Mas, primeiro, um pouco de história, brevíssima, para não maçar os arcanos do blog, das águas de Lisboa. Ulisses, o mítico fundador da cidade, teve a sorte dos principiantes. Tenho imensa inveja da sua chegada a Lisboa. Golfinhos saltavam alegremente pelo estuário. Duraram até aos anos cinquenta. Camoens viu-os aos magotes, o Camoens atento às aguas que em relação ao Tejo não hesitou em descrevê-lo como o claro, e ledo rio.
À chegada a Lisboa, que ainda não era assim chamada, e era só colinas desabitadas, com umas vagas cabanas de pescadores na orla, Ulisses, inclinou-se sobre a amurada e com a mão em concha bebeu directamente do rio. Depois ao levantar o olhar viu um estuário que tinha uma curiosa cor dourada. Havia praias nas duas margens do rio. Bocage, o poeta satírico, caústico senhor de uma rudeza vitriólica cuja imagem que por uma ironia da história apareceu duarnte dez anos nos pacotes de acúcar dos cafés, fala da praia de Chelas...
Entretanto, no tempo de Ulissses ainda não tinham chegado os garimpeiros fenícios, esses pré-burgueses, mercantilistas e traficantes ávidos, os primeiros predadores de Lisboa. As praias tinham ouro fino, em barda. O ouro, os seus reflexos, douravam o ar. Apetece recuperar uma das expressões típicas do poeta que via as cores do ar, Mário de Sá-Carneiro que falava em êxtase morfínico do ar irisado. Maravilhoso tempo em que se falava sem pudor das irizações que electrizam o horizonte. Mas deixemo-nos de arqueologia literária. Ficou explícita a claridade do rio,doutros tempos de ares mais puros e leves, uma claridade alegre que comunicava com a pureza das águas. E bandos de golfinhos, em vez de garrafinhas de plástico espanhol a boiar entre jornais espectrais abertos na página dos mortos. E não havia redes de esgotos a defecar no rio.
Ma isto de ter memórias literárias e históricas avivadas e operativas é uma benção e uma maldição. Lembrando-nos do passado, parece que os tempos banais, os nossos, "demoi", sem elegância que vivemos, tornam tudo apoético. Poder-se-ia dizer que a função essencial da sociedade em que triunfaram os valores económicos sobre os aristocráticos é a apoesia. E isso porque a arte não tem utilidade nenhuma, a poesia não tem valor. Mas isto por aqui ia longe, e eu só quero falar da água da torneira de Lisboa.
Da última vez que bebi um copo de água da torneira em Lisboa ia tendo duas paragens: uma cardíaca de tipo experimental, e uma paragem de memória. Sabia tão mal! Passava de certeza em todos os testes da ASAE, devia ser bacteriologicamente pura. Expurgada de triliões de cílios vibratórios, tratada com não sei que cloros ou quejandos, vinha por tubos de alumínio ou de plástico, caía no copo, e da água só tinha a aparência.
O estudo dos "simulacra" ocupou bastante os filósofos pré e pós eleatas. Mas o que é novo na arte dos simulacra modernos, é que se faça o simulacra a partir da matéria real. Obra portentosa, digna de um Dr. Jekill, de um Fausto de Caneças, a da EPAL (Empresa Pública das Águas de Lisboa). A veneranda companhia que tem a responsabilidade biológica e cívica de nos hidratar transformou a água real em fantasma! em simulacra!
Como sou dado à indagação divagante e permanente, a única aquática, de resto, pensei mesmo se o problema de etilismo brutal de Lisboa não seria devido ao péssimo sabor das águas de Lisboa. Contrapor-me-ão que na nossa sociedade de oferta múltipla e neo-liberal sempre existe a água engarrafada! Mas a isso eu também contraponho que toda a água engarrafada em plástico sabe inequivocamente a plástico, lato e translato. O que eu acho é que o plástico, que goza das virtudes herméticas de um produto alquímico, é um falso material inodoro. Tem cheiro. Comunica esse cheiro às substâncias que envolve. Além disso, mata a água. Mata-lhe o animus, o spiritus, a vibração, a ideia e a essência. Plastic people é uma expressão fantástica e justa que denota com toda precisão uma sociedade que tornou o plástico num elemento totalitário.
4 Comments:
Talvez porque os tempos sejam apoéticos, plásticos, é que a poesia deve ser resistente - ter o sabor (e a marca, por registar) de verdadeira água.
Pois é. Vamos lá ver se a hidrólise da sílaba nos leva a beber amrita!
A poesia estou certo resistirá, em pequenas bolsas, mesmo no anonimato, longe das luzes da fama e da glória mas cheia de luz, digo da sua treva luminosa.
Um abraço,
Miguel
Caro Drummond:
Inesquecível a água cantada de "todas as fontes" e riachos, veja-se esta palavra: ria+acho.
Correr ao lado de um riacho e beber de vez em quando aquela água alegre, cristalina, a fazer cócegas na palma da mão.
O Homem é um gorgulho cagão que veio para comer tudo, até a si mesmo.
Um abraço do Ó
Quem já bebeu a água das fontes, atirou um balde a um poço limpo, ou correu como diz ao lado de um riacho e bebeu aquela água baptizou-se, imunizou-se.
E lembra o Ó muito bem a "alegria das águas."
Alguns de nós, pelo menos ainda temos os olhos com brilho, parte dele dado pela graça das águas.
Um abraço,
Miguel
Enviar um comentário
<< Home