INSTANTE EXPLÍCITO (A Peixaria)
A mulher da peixaria modelo é laboratorial. Tem uniforme branco, touca, luvas, botas de borracha branca. Espalhados sobre gelo os peixes parecem calmos, narcotizados. Foram alinhados por espécies. Estão em grupos que parecem formações de soldados.
Caranguejos semi-vivos esboçam movimentos quase congelados de tenazes. Dentro de sacos de rede de plástico (que lembram as coberturas com que se tapam os prédios em obras e as "esculturas" de Christo) estão ameijoas e mexilhões.
A ordem - se a separação e o "arrumado" são a ordem - impera. Os moluscos e bivalves estão na extrema esquerda. As enguias, também semivivas, aglomeram-se num cilindro largo de plástico branco.
Os clientes tiram uma senha primeiro. A senha tem a forma de uma ponta de flecha? De um anzol de papel? Tem um número explícito, a ser seguido religiosamente. A fé profunda nas virtudes e poderes do número permite que cada número seja absoluto, tenha precedência sobre todos os mais. A indiscutível senha que permite que o cliente (o predador mole?) se aproxime das suas presas e aponte para algumas.
A mulher da peixaria, por exemplo, apanha um sargo, com um ar distante corta-lhe o ventre com uma tesoura vermelha, serrilhada. As entranhas são atiradas para o lixo. Imaginar-se-ia, por exemplo, que numa cena da Inquisição as tenazes depois de perfurar o ventre atirassem pedaços de tripa palpitante para o chão ou para um recipiente? A seguir vão as guelras. A boca do lixo que recebe as entranhas, e guelras e aletas e barbatanas é circular. Dela emana o perigo e o mistério das coisas profundas inutilizadas. Tanta entranha e guelra e barbatana deitada fora. Irão para onde?
Impassivel a mulher laboratorial continua o seu trabalho. Agora é a finale. Uma robusta torneira está sempre aberta. O peixe eviscerado, sem aletas, é lavado pelo jacto de agua, e o líquido que primeiro sai vermelho forte depois vem rosado. Agora, por fim, o peixe está socialmente aceitável, é só carne sem órgãos. Um puro corpo sem órgãos.
É quase estranho que cheire a peixe.
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