O PÉ ESQUERDO DE FERNANDO PESSOA
Esta fotografia é uma das clássicas de FP, e tornou-se um dos grandes ícones do final do século passado, quando cada vez mais se começou a descobrir o Império/Universo que era FP. Nela, dada a raridade de imagens do poeta, tudo é precioso, matéria sígnica de primeira ordem e para o Taoista atirado para a profundidade sem fim do instante, trata-se de uma mina.
Antes de me debruçar sobre a elegância modesta do afinal amanuense, o apagado empregado de escritório que sabia que era D. Sebastião e Camões ao mesmo tempo, a gabardine bem dobrada sobre o braço, atrás da mão que segura um livro que me parece ser um hard-back, note-se a camaleonice de F.Pessoa: está todo de negro vestido como as duas mulheres, dois tipos populares, uma delas de chaile, outra de pé envolto num penso, que vem atrás dele. O negro é uma cor transversal, adorada pelos lisboetas e portugueses de todas as classes em geral, que denota uma escusa severa à fantasia, e uma preferência pelo toque clericalista. O negro não fala, tem a sedução dos silenciosos, escusa-se da sua presença, embora seja impositivo para o exterior - aqui não entras - o negro não é uma cor calada por dentro como o amarelo, por exemplo. O negro é a eloquência do negativo, do que se priva muito, do que suprime a distração e a fantasia, e todas as tonalidades e timbres das coloraturas.
Negro, pois. Cor de corvos e impérios idos. Sotaina de padre e bata de estudante de Coimbra, e das mangas de alpaca. Mas deixemo-lo assim breve e anunciado. O que nos interessa agora nesta fotografia são os pés dos personagens. Fernando Pessoa tem as calças um tudo nada curtas, deixaram-lhe um pouco demais à vista o tornozelo. E não constituirá surpresa dado o tipo de asténico geral, acentuado pelo negro, verificar que tem um tornozelo magro, por seu turno acentuado pela meia negra, talvez de seda. Os sapatos, estão bem polidos. Revelam igualmente um pé magro e dado o "soin" modesto de toda a sua figura - fez a barba de manhã, penteoou o bigode com o pente, acertou com algum vagar o lacinho (mas a bebedeira da véspera fá-lo pender de banda?), não se enganou nos botões, e rematou pondo o chapéu, que o torna mais alto.
Recorde-se que por esta altura a altura média do português era um metro e sessenta. (altura mínima para entrar na Academia Militar, durante muitos anos, diga-se de passagem), assim as duas populares, uma peixeira de xaile negro, atirado de forma trapalhona sobre os ombros, que seguem atrás do poeta, terão um metro e cinquenta, pois sabe-se que o poeta tinha um metro e setenta e pouco. São um contraponto interessante. Uma delas é meia coxa, por causa de um pé enfermo, enorme, que se insere ao mesmo tempo do pé magro de FP no mesmo losango do motivo do pavimento - ( e falemos do chão ordenado a negro e branco dos pavimentos. com padrões de diamante, uma aplicação geométrica - tentativa de disciplinar o possível caos do empedrado, das mil fugas irregulares de cada pedra de calcário?
À esquerda física imediata do poeta está o candeeiro de ferro, pintado de verde. Já vem do tempo de Cesário verde este género de candeeiros, que começaram por ser de gás. Ao lado do poeta parece um pilar, e atrás das duas mulheres de ar popular, grosseiro e desconhavado vem uma série de transeuntes indiscriminados. Para quem teria dito "eu é multidão", uma coisa é certa FP está e não está preso pelos mil fios que unem as multidões. Camaleonicamente vestido de negro, funde-se no "negro geral" vestimentário, massa silenciosa que circula por toda a cidade, mas destaca-se: caminha com todos e ninguém.
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