Um pouco de Cèline para desenferrujar a verrina:
Pequenos Ladrões
É preciso que a loucura dos massacres seja extraordinariamente imperiosa para se disporem a perdoar o roubo de uma lata de conserva! - que digo eu? - a esquecer! É bem verdade que não estamos habituados a admirar todos os dias uma imensidão de bandidos com opulência que o mundo inteiro, tal como nós, venera, e cuja existência, desde que a examinemos um pouco mais de perto, se revela um longo crime todos os dias renovado; mas essas pessoas desfrutam de glória, honras e poder, as suas perversidades são consagradas pelas leis, ao passo que, tão longe quanto pode levar-nos a História, tudo nos demonstra que um furto venial e sobretudo de alimentos mesquinhos como côdeas, presunto ou queijo, atrai infalivamente sobre o seu autor o opróbio formal, os repúdios categóricos da comunidade, as penas máximas, a desonra automática e a vergonha sem expiação, e isto por duas razões: em primeiro lugar porque o autor de tais perversidades em geral é pobre e em si próprio este estado implica uma indignidade capital, e em seguida porque o seu acto comporta uma espécie de censura tácita à comunidade. O roubo do pobre faz-se uma maliciosa recuperação do poder individual, está a compreender... Aonde iríamos parar? Por isso, repare bem, a repressão dos delitos insignificantes é exercida em todos os climas e com rigor extremo, não só como meio de defesa social mas também, e acima de tudo, como aviso severo a todos os infelizes para continuarem no seu lugar e na sua casta, mansos, resignadamente satisfeitos por morrer ao longo dos séculos, e indefinidademente, de miséria e fome... No entanto, aos pequenos ladrões até agora restava uma vantagem na República, ficarem privados da honra de usar as armas patrióticas.
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Digo-vos, simplórios, vencidos da vida, escorraçados, espoliados, transpirados de sempre, previno-vos: quando os grandes deste mundo resolvem amar-vos é porque vão transformar-vos em carne para canhão... É o sinal... É infalível. É por amizade que a coisa começa. Luís XIV, esse, que nos lembremos marimbava-se por completo para o bom povo. Quanto a Luís XV, é a mesma coisa. Estava-se a cagar. Não se vivia bem nesse tempo, é certo, os pobres nunca viveram bem mas ao estripá-los não havia a teimosia e a obstinação que encontramos nos tiranos dos nossos dias. Para os pequenos, digo-lhe eu, só há descanso com o desprezo dos grandes que apenas podem pensar no povo por interesse ou sadismo... Foram os filósofos, repare ainda a propósito, que começaram por contar histórias ao bom povo. A ele, que só conhecia o catecismo! Empenharam-se, proclamaram eles, em educá-lo... Ah! Que verdades tinham a revelar-lhes! E das boas! E das fresquinhas! Que brilhavam! De se ficar embasbacado! É isto!, começou a dizer o bom povo, é isto mesmo! É precisamente isto! Vamos morrer todos por isto! Nunca quer mais do que morrer, o povo! Tal e qual. «Viva Diderot!», berraram eles, e depois: «Bravo, Voltaire!» Ao menos eram filósofos! E viva tmbém Carnot, que organiza tão bem as vitórias! E viva toda a gente! Ao menos eram gajos que não deixavam o povo morrer na ignorância e no feiticismos! Mostraram-lhe, eles, os caminhos da Liberdade! Emanciparam-no! Mas não durou! Primeiro saibam ler todos os jornais! É a salvação! Caramba! E isso rápido! Basta de analfabetos! Não pode havê-los! Apenas soldados-cidadãos! Que votem! Que leiam! E que se batam! E que marchem! E mandem beijos! Sob este regime, o bom povo acabou por chegar ao ponto certo. O entusiasmo de ter sido libertado não havia de servir para alguma coisa? Danton não era eloquente por tão pouco. Com alguns berros tão sentidos que ainda hoje se ouvem, do pé para a mão mobilizou o bom povo! Foi o ponto de partida dos primeiro batalhões de emancipados frenéticos! Dos primeiros pobres-diabos votantes e baindeirófilos que levariam Dumouriez a fazer-se esburacar na Flandres! Para o próprio Dumouriez que, chegando demasiado tarde a este pequeno jogo idealista inteiramente inédito, e acima de tudo interessado em carcanhóis, desertou. Foi o nosso último mercenário... O soldado gratuito era novidade... Uma novidade tal que Goethe, tão Goethe como era, ao chegar a Valmy ficou pasmado. Perante aqueles magotes esfarrapados e apaixonados que se davam espontanteamente a estripar pelo Rei da Prússia para defesa da inédita ficção patriótica, Goethe sentiu que ainda tinha muitas coisas a aprender. «A partir de hoje», proclamou tão magnificamente como seria de esperar do seu génio, «começa uma nova época!» Tal e qual! Em seguida, como o sistema era excelente puseram-se a fabricar heróis em série e cada vez menos caros devido ao aperfeiçoamenteo do sistema. Toda a gentes se deu bem. Bismarck, os dois Napoleões, e tanto Barrès como a Cavaleira Elsa. A religião bandeirista substituiu prontamente a celeste, velha nuvem já emurchecida pela Reforma e desde há muito condensada em pés-de-meia episcopais. Antigamente, a moda fanática era «Viva Jesus! Fogueira com os heréticos!» Raros e voluntários, porém, os heréticos... Ao passo que, de futuro, aqui onde nos vêem é com hordas imensas que os gritos: «Morte aos que não matam uma mosca! Aos pãezinhos sem sal! Aos inocentes leitores! Milhões de homens de face voltada ao perigo!», despertam vocações. Os homens que não quiserem assassinar nem deitar as mãos a ninguém, os mal cheirosos pacifistas, agarrem-nos e chacinem-nos! Que os trucidem de mil maneiras e feitios bem desarrincados! Para aprenderem, comecem por arrancar-lhes as tripas do corpo e os olhos das órbitas, e acabem-lhes com os anos de vida porca e abjecta que eles têm! Que os façam finar-se legião por legião, saltar na corda bamba, sangrar, fumegar em ácidos, e tudo para a Pártia vir a ser mais amada, mas alegre e amena! E se lá houver imundos que recusem compreender estas coisas sublimes, só há que fazê-los enterrar imediatamente junto dos outros, não digo isto à letra, claro, mas no fim do cemitério e com o desonroso epitáfio de cobardes sem ideal uma vez que perderam, estes ignóbeis, não só o mágnifico direito a um cantinho de sombra no monumento adjudicatário e comunal erigido aos mortos como deve ser, na álea central, mas também o direito de captar um pouco do eco do ministro que, nesse mesmo domingo, vai urinar à casa do prefeito e depois do almoço fazer uma berratina sobre as campas...
in Viagem ao Fim da Noite, Louis Ferdinand Cèline
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