PORTUGUÊS PALIMPSESTO
“Delacroix, lac de sang hanté des mauvais anges,/ Ombragé par un bois de sapins toujours vert,/ Où, sous un ciel chagrin, des fanfares étranges/ Passent, comme un soupir étouffé de Weber…” Charles Baudelaire, in Fleurs du Mal
Dizem que tenho sangue lusitano
e que nasci do amor do Mar e da Montanha
mas estes esqueceram-se de me dar voz
e com o trabalho por acabar
sou uma estátua abandonada
o começo falsificado de um poema
durante séculos pensei que era um guerreiro
os guerreiros tem sempre para onde fugir
e claramente talhei na pedra
todas as feridas
hospedadas no meu corpo
um jardim de sangue seco teria nascido
face às palmeiras
recebi uma educação labiríntica,
Tácito, Balzac, os paradoxos de Epiménides,
os silêncios vociferantes
entre a tagarelice dos personagens de Beckett
falava francês grego como um simbolista
embora só me pareça com Mallarmé
quando caio de bêbedo na praia
fiz as minhas viagens iniciáticas
às tavernas secretas
e à Creta dos bordéis infames
onde os vocabulários mais ignóbeis
coroam as melhores noites de luxúria
depois do assassínio de Salazar
morto por uma cadeira trágica de Calígula
escondi-me detrás de trinta anos flácidos
arrastaram-me de lá à força
não consegui ser grego nem latino
apesar dos jogos áticos
quando me retiraram o mundo
e me deram agências de viagens e hotéis
cheios de máquinas fotográficas
a partir de então tornei-me o mais esforçado
sátrapa das pequenas histórias impessoais
um Sísifo de burocracia
construí com orgulho autoestradas sem fim
permitindo que os gases tóxicos da era
fossem elemento essencial
nas inaugurações
mas rejeito a acusação de cosmopolita tantas vezes contra mim lançada
de facto estava apenas alucinado
no dia do assassínio linear de Pandora—
a pobre foi morta por minha distracção—
perguntei durante a orgia numa Tasca de província
onde está a caixa de Pandora?
tinham-na queimado para assar sardinhas
às vezes interrogando a história
jogava aos dados com os mortos
mas estes tinham pouco tempo
sobrecarregados de trabalho
entravam às dezenas dentro dos vivos
e levavam-nos um pouco à balda e sem norte
por toda a parte
pelo menos é o que sempre vejo quando saio à rua
de manguito na mão -
ordenei que o senador Ferreolo,
de resto, meu avô, e mais trinta e sete cavaleiros
netos de centuriões
fossem exilados
para a Poesia
terra onde só cresce nevoeiro
uma túnica pouco menos de púrpura
que esvoaça pela manhã
e os meus anéis de ouro
seja dito—
atirei-os ao mar só para que por um instante
parassem as luzes da publicidade perpétua
ninguém compreendeu
que isto era uma acto sublime
todos tão metidos com a sua pequenina morte diária
com a dimensão banal
do seu quotidiano
martelado por zangas moles ou uma dor no cu
tive a delicadeza
de construir um museu flutuante no rio
onde um palco de execuções em em fina pedra
estava preparado para que se ouvissem
por toda a parte
os uivos dos poetas
condenados
nos intervalos das minhas noites
dedicadas à bebida
escrevi a nova história de Bocage
a história dos fenícios na Ibéria
uma composição ligeira sobre Mirobieus deus das águas
uma nova introdução à história do fado e do acaso
e um breve tratado sobre o veneno dos nevoeiros
fui eu quem salvou Filipa de Vilhena
de ser Mãe Eternamente
enferrujando-lhe a espada secreta do Mythos
de resto deviei estradas vicinais
construí barragens
desde então tornou-se mais fácil em Lisboa
lavar o sangue
cão fiel do império
expandi as nossas possessões até à América e à Neustria
e salvo erro até o país dos viúvos e dos inconsoláveis
a minha morte deve-se à minha mulher Leonor Teles de Meneses
e a uma paixão funesta por ayahuasca mexicana— a planta,
a essência dos deuses—tornou-se a essência da morte
de mim que se poderá dizer mais tarde?
fui um português palimpsesto sob os céus céuzentos da era
mordi com raiva no nosso alfabeto
e ultrapassei com uivos os limites da fala ou seja
os limites do pensamento
as ilhas que descobri—adorada
distância —Díada e Polisigna
precedem a minha entrada
com passos renitentes
no sombrio rio Hades
2 Comments:
Excelente poema!
Obrigado Luís,
apareça sempre e como dizem os ciclistas: da próxima tentarei fazer melhor: -)
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