/* PRIVILÉGIOS DE SÍSIFO 反对 一 切 現代性に対して - 風想像力: 2006-12

PRIVILÉGIOS DE SÍSIFO 反对 一 切 現代性に対して - 風想像力

LES PRIVILÉGES DE SISYPHE - SISYPHUS'PRIVILEGES - LOS PRIVILÉGIOS DE SÍSIFO - 風想像力 CONTRA CONTRE AGAINST MODERNISM Gegen Modernität CONTRA LA MODERNITÁ E FALSO CAVIARE SAIAM DA AUTOESTRADA FLY WITH WHOMEVER YOU CAN SORTEZ DE LA QUEUE Contra Tudo : De la Musique Avant Toute Chose: le Retour de la Poèsie comme Seule Connaissance ou La Solitude Extréme du Dandy Ibérique - Ensaios de uma Altermodernidade すべてに対して

2006-12-05

O VENENO DO MAR



Só queria ser um alambique, pingar sol pela boca, navegar no infinito álcool. Mas o mar foi subvertido, o medronho perdeu-se num mau sonho alemão. E os meus cantores do meu país arranham-se uns aos outros, cantam para os seus espelhos.



E o Poço em Chamas? O Poço Voador? oh ainda tenho os meus seixos no lago, e o fogo de uma Senhora que me chama para outro fulgor, longe, longe dos dias maldizentes.

Entretanto passem com cuidado pelas minhas sombras, tudo o que vi ficou vivo, tudo o que vi me tornou mais claro e mais obscuro. Tenho o sangue dos veios da noite, bebo o veneno do mar.


CAMINHOS AO AVESSO


Vivo num lugar cheio de caracóis, que me viram os caminhos do avesso. Cornudos, esperaram a chuva durante meses. Um muro que eles escolheram para Castelo foi levado no bico por um Grande Mocho, para o oferecer ao brilho do mar que dispara ao longe.



Ando na ponta dos pés, para ver se crio por fim asas outra vez nos pés. Lembro-me com aquele vago encantador das coisas certas, que já fui um deus grego menor. Era minha a primeira cor da aurora. Há quanto tempo foi? Já nem procuro nas espiras das cascas, no visco, na nobre baba. Foi.

Agora sou uma pequena pedra no portão. Passam-me caracóis pela cabeça. Caracóis, dias, eras. granizo. E vou-me transformando em casca. Por dentro de mim a pequena pedra agita-se, ganha Aza. Tenho a certeza que responde a palavras perdidas como Leda, Fremoza, Pharmacia, Soidão.

E uma mancha brilhante sobe da ponta das ervas. Orlado de orvalho pelas primeiras luzes da alba, toco no pulsátil tempo. O espaço está vivo também. Outros tem carros de Soberanos, puxados por Cavalos de Sol, por golfinhos da Próxima Montanha Lunar, eu, o Imperador das coisas mínimas, tenho um carro puxado por caracóis.

E a pedra fermenta, borbulha, estende preguiçosamente os seus átomos. Do alto desce a Tiara, de dentro desce a cauda, ao meio as Azas. Hei-de voar pelo Fogo.


2006-12-04

DESERTO


há coisas que só sabemos em sangue e em queda
não vale a pena chamar a ambulância
há coisas com um dente fundo que nos rasga
mas o médico não serve nem o confessor

há coisas em que só o deserto nos ouve
e que só o deserto sabe cuidar

ASSOCIAÇÕES DE DUENDES




Tenho um duende no olival, com os beiços mordidos pelas borboletas. Boceja moscas verdes, como as mulheres antigas, de mão na anca. Às vezes salta para o beiral do poço, e de lá de cima beija a água do fundo.

Tem as olheiras manchadas por mãos de moças, que foram lá buscar força para as tetas. Nunca quis ser um rico caramelo, e por isso quando chega a geada abre as goelas para a sorver. Sempre que vê mulheres tolas que vem roubar a laranja mais longe, espuma um bafo verde. E elas voltam para casa com um nariz comprido que gela os maridos e faz rir os velhos, que sabem da história.
O meu duende também salta para o meu telhado, e pateia para que eu não crie sereias atrás das orelhas. Para que eu não me enfrasque com livros dos Grandes Pensadores.


Ele acha que tem grandes deveres de azeitona.

SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO

Como já não há alma para comprar, foram todas vendidas, tudo se tornou chato, plano, unidimensional, repetido, novo - nada mais velho do que o novo, monótono, numa palavra, moderno e global (Bem, foram duas) então

Vamos chatear os SHOPPINGS!





SONETO AUTO-COLANTE


Quero o teu amor comercial, baby!
O preçário do teu desejo, baby!
Mostra-me a tua folha de imposto, baby!
Quanto gastaste hoje, baby!


Dá-me um beijo lucrativo, baby!
Faz-me um linguado inflacionado, baby!
Gosto do teu corpo de centro comercial, baby!
Enrola-me as pernas na minha play station, baby!

Vamos fazer amor com gas-oil, baby!
Vamos ter uma tusa de autista, baby!
All night long debaixo do néon, baby!

Lambe o meu cartão bancário, Baby!
Quero a tua ternura de plástico, baby!
All night long debaixo do néon, yeah, do né


on.

AFORISMOS LUSOS, ou aforisminhos


Em Portugal tudo o que começa de forma clara, em breve fica Oblíquo, antes de se tornar eternamente Chato.

Assim o nosso sucesso faz mal aos outros.

A nossa indiferença ao Outro - não ao Outro sociológico, mas ao palpável, íntimo Outro, o nosso cão, mulher, filho - não faz diferença ao Outro.

Para chegar ao Castelo da Fantasia tem que se saber fintar o demónio da Irrealidade.

Mais vale inventar um demónio novo do que suportar um antigo. Eis porque mudamos de primeiros-ministros com frequência.

NOTA: Mas este aforismo é altamente instável e depressa se inverte, sem que cause mossa, em : mais vale suportar um demónio antigo do que inventar um novo. Eis porque de vez em quando temos uma ditadura.

E assim vamos, ou governos moles, de "consensos" (como dizia o obeso M-Soares) para ter Crédito bancário, ou ditaduras, para nos impor a Ordem e a Moral.

Quando um político jura, mente. Quando mente, jura.

Os maiores fazedores de promessas são os políticos que querem chegar ao Poder.

Prometer o Paraíso é uma forma de nos manter no Inferno.


Proposta patafísica:

Caviar e champanhe para as massas, já!

2006-12-03

How boring are jeans?

I don´t keep asking that question, though everywhere I turn all I can see are jeans and ads. So we managed to turn the planet into a double jungle - ad jungle and jeans jungle? Not bad, but I am learning to dive deep. Chance that 200 feet under the totalitarian sea of jeans and ads there´s a little room to breathe.

BARBIES MORPHARAM












O
Darwinismo, a evolução das espécies, não é monopólio da Fauna e da Flora e do lento Reino Mineral, que demora biliões de anos a produzir um diamante ou um Vulcão em condições. Também se nota nos vários sequiturs, ou sequências, cada vez mais refinadas,
dos instrumentos produzidos pelos humanos.

Sinder telefonou-me muito excitado a dizer que tinha descoberto a tramóia toda. Aquele gesto que favorece o torcícolo e a tendinite e o fast-alfabetizado - fez-me o favor de me explicar que esse gesto era o agarrar do telemóvel e as sucessivas manipulações que ele implica - tem uma história atrás e adiante, um subprograma retrocausal. Tudo isto pela simples razão que as Barbies - ameaçadas de extinção por várias centrais de canibalismo e já dizimadas/mutiladas/queimadas por hordas dos novos meninos digitais - estão, em massa, a morphar (to morph) em telemóveis.

A simples e vulgar (até agora, porque as coisas tomaram um aspecto mais feio) tendinite, segundo Cinder, era uma iniciação primeiro da matéria proteica (evascerimento) e a seguir do nosso corpo todo (ou seja à captação do nosso corpo inteiro pela plastificação in progress. De facto, acrescentou ele hoje em dia seria necessário fazer não só uma arqueologia mas uma antropologia do plástico. Mas adiante. Segundo Cinder, as Barbies - o Conselho Supremo das Barbies - na impossiblidade de fazer híbridos com humanos - decidiu seguir um caminho diferente. Morphar primeiro em telemóvel, e a seguir após nos terem tendinizado e evascerimentado segundo o factor de Kosh, podemos ser facilmente plastificados com o apoio dos harambazords, (sempre eles).

Entretanto Sinder murmurou que durante todos estes anos as Barbies tinham transferido hectrons (medida do planeta Konsu) de concentrado de glândula pineal subtraído a humanos juvenis dos 5 continentes. Hectrons de Probush (glândula pineal reorientada, remisturada e direccionada, sistema HighKontrol límbico) estariam prontos para ser projectapsados (técnica mista de propulsão e introjecção vertigionosamente veloz) no corpo politendinizado do utente médio de telemóveis.


Só para avisar, a bem dos Teapots em geral.

Comité Patafísico de Arcanjolas.


Teapots


I typically take a tea with Porkêra, at mid morning. Porkêra as you may remember is my assistant. He is agnostic, and believes that the Declaration of the Rights of Teapots is on its way. The first article. according to him, should read-

All Teapots are equal.

quatro metros de fio vermelho. toda a tarde desfez-se o caracol. começou por subir a parede do computador. do ecrã. deixei-o. luz com luz. luta entre espiral e digital. o lento aikido do caracol. kokyu-nague à obediente. diligente. di. li? gente? horda digital

lentarelentalentalentamaisdoquelenta sub.ida. subida suicida digital. descidadescida?

todaatarde a sub.ir. quatro metros de fio vermelho. levá-los ao scanner. não. não naõ, não. não. tive tempo de sair. sair para a rrrrr para a rerua. para a rererua. tive temp.ó tive temp.u. tive temp.ah de ver um anão a tocar violino no cais do sodré. do violino saíam raivas anãs, matizes. serpes. górgonas. gárgulas. tudo pequeno. o pequenissimo bestiário do anão. tempos de nano memória. de

2006-12-02

DRUMMONDAFORISMOS









Se pudéssemos suicidar os outros baixava drasticamente o número de suicidas.


A morte já é considerada como uma doença mas quando, inevitavelmente, aparecer a sua cura, ficar-se-á com uma vida incurável.

Na realidade, as praias enchem-se na secreta esperança de um naufrágio espectacular.

Há mais viúva num viúvo do que de viúvo numa viúva.

Há inúmeros homens que vivem todo um matrimónio como se já estivessem viúvos, mas raramente dão por isso.

Um homem estúpido nem se apercebe como mesmo o seu silêncio é estúpido.


Quando existe um intenso défice mental colectivo quem sofre é a paisagem.

Os jardins espontâneos nascem de jogos de nuvens com a razão.





CÉU. E. TERRA

Pintura de Anselm Kiefer.


Antigamente, no longínquo e decadente século XX, quando Heaven e Hell tinham existência autónoma, e eram absolutamente estanques um do outro, não havia dúvidas, ia-se para um ou para outro sem haver a menor dúvida, sem delete possível, sem regresso.


Mas nos funestos anos 80 surgiu o Hino Globalista.

Pouco a pouco o
Imagine, de John Lennon onde aparece a linha Imagine there is no Heaven tornou-se um mantra, um Pai-Nosso softcore do credo aguado, sincrético, desculpabilizante, laxo, igualitário, xanaxado, desdramatizado, pasteurizado e liofilizado da bruderhud dos nossos dias.

Tanto se traulita à esquerda como à direita (Passa na Rádio Renascença!) como ao centro (essa coisa pêndula - o centro - que penduricalha segundo a inclinação do momento e a deslocação de cima para baixo, ou lateral, da massa ideológica das outras duas contra- partes da engenhoca).

O Imagine relativizou tudo, com a doçura liberal do gerir-racionalizar-reduzir-modernizar . Deve ter sido mesmo escrito por um liberal, ávido pela conquista de mais terrenos para o mercado. Depois do Imagine o mercado abriu em duas frentes novas, dois centros comerciais apetitosos: o ex-Hell e o ex-Heaven.

NOTA de rodajoelho : não é só o cristianismo que tem Heaven and Hell, o hinduísmo, o islamismo e o budismo também. As descrições do Hell budista, que não é eterno, dão conta de uma variedade de estadias animadora. Enquanto nos Infernos cristãos tudo é um mar de chamas imparáveis parecido a Portugal no Verão, no budismo há Infernos de todos os tipos e para todos os gostos, não só com chamas, fumos, vulcões em explosão, mas com Gelo, Chuvas frias, Saraivadas com bolas de granizo do tamanho de cabeças de Yak... (regiões eternamente húmidas e pior ainda com Gelo Húmido e Outros Mimos como Árvores que Disparam Rodas de Navalhas, Arbustos com Bocas de Serpe Que Mordem Mesmo E Dói Comúkamandro, etc.etc. Não se brinca nos Himalaias).


Enfim, antes da demolição dos céus e infernos introduzida pela visão decididamente escoteira de John Lennon, quanto mais não seja, havia montes de pathos. Hieronimous Bosch tinha espaço bem como Dante tinha fôlego. (De notar que ambos puseram Papas no Inferno).

Imagine-se uma cena antiga, que aconteceu na era paleolítica dos nossos avôs:

O moribundo, na cama, já com exalações letais, rodeado pela família chorosa, apertando a mão descarnada a todos os familares, amigos, contemplando com horror e súplica o crucifixo ou a estátua de Shiva Nathraja - nem na hora final acabam as ambivalências - não tendo a certeza se se vai dissolver em finíssimas partículas nirvânicas, se vai parar a um purgatório de lavagem, para desencardir películas renitentes de pequenos vícios ou se,

Diria :
Padre...bloguei demais. Ou então com compunção lítrica ou lírica devastadora- Já Bocage não sou, gente ímpia que creste em mim. etc... rasga meus versos e crê na eternidade !(mas que te deu na telha para escrever aquele arrependente soneto, Oh Manuel Maria Barbosa Du ? ) -

ou se - fatalidade negra-negra, que já lhe gelava a cara, prépondo, fazendo o download da máscara mortuária final, misto de sorriso e de esgar - iria parar aos quintos do inferno, para aí ser picado. lanceado. talhado. decapitado. perfurado. cozido e grelhado por macambúzia ou feroz cambada canalha e pesporrenta de maltrapilhos cheios da zumbidora e imparável energia do Mal. Enfim, no derradeiro filme, no último teatro,
havia mesmo Suspense até ao fim.

Mas o Imagine do Lennon deu cabo, disso. Não se vai para lado nenhum! Finis patriae et Ego!
Agora toma lá tranquilizante. Come a sopa morna, e de pacote. Chora a lagrimita da benzodiazepina. Enfrasca-te no pronto-já-passou-pronto-a-vestir.

Entretanto, o No Hell da cançonetazita, corolário inescapável do No Heaven também tem muito que se lhe diga.

Uma vez que a Grande Gadanheira corta o ritmo cardíaco pela raíz, e o cérebro pifa - de repente como uma lâmpada que se fundiu - não há save nem back up que lhe valha (por enquanto e durante e muitos gregorianos anos pela frente o cérebro e os seus conteúdos, e potenciais vai ser intransferível para qualquer suporte de memória) - põe-se a Pergunta Crucial

então vai toda a malta para o mesmo lugar?

Um lugar comum. O reducionismo igualitarista decretou que agora vivemos num grande caldo amorfo, sem metafísica. Qualquer coisa como o Lietchenstein ocupado pela China, ou a China ocupada pelo Lietchenstein,

Dada a gravidade da situação, nós Hindividualistas F'Rozes avançamos com uma

Proposta patafísica:

Imagine there is Heaven and no Heaven too Bu
t you're not allowed to get into any of them.


O CALOPSITA


A caturra, da ordem dos psitacídeos na realidade chama-se calopsita.É bicho sóbrio proclamam os criadores de caturras. Satisfaz-se com rações mínimas. Tal como os hamsters (já passou a moda) procria com facilidade. Em breve, garantem os criadores, o comprador de caturras terá ninhadas exuberantes.




Proposta patafísica de alteração de uma entrada do dicionário:

Diz o dicionário caturra, s.m.s.f. Indivíduo teimoso aferrado a ideias ou processos antigos.

Definiçâo errada! O significado contemporâneo de caturra deu uma volta de 180 graus. Está longe de ser a primeira vez que isso acontece a uma palavra.

Assim caturra s.m.s.f. na realidade é : indivíduo teimoso aferrado a ideias e processos modernos. O Calopsita!

Não há autarca que não seja calopsita. Nem ministro. Todos os partidos são calopsitas. O Presidente há dois dias reiterou que a aposta portuguesa é calopsita. A modernidade.


Toca a criar caturras. Dada a baixa taxa de natalidade actual é um imperativo nacional. Tecnologia desenvolvida garante bons interfaces e interessantes permutações entre o chamado sapiens sapiens faber e o psitacídeo calopsita. Ambos dão-se muito bem dentro de gaiolas.

A ARTE DE DESAPARECER



Nova oferta da nosssa gama de desaparecimentos!

Desapareça sem deixar rasto.

Nunca mais terá de atender o telemóvel!
Nem esconder-se atrás do jornal.

Especialistas de DESAPARECIMENTO de primeira classe em países de terceiro mundo.

Pagamentos suaves, método nórdico.

2006-12-01

O Chateadouro


Ninguém se importa muito com os pobres em Portugal porque isso é demasiado banal, são a maioria e das maiorias não reza a história, muito menos as crónicas da actualidade. Na província em que eu vivo cerca de 60% dos habitantes vive na pobreza. Sua Eminência o Bispo, uma vezita ou outra,lá falará deles, em tom angustiado como convém, autarcas embaraçados farão cabriolas com palavras como limiar da pobreza, salário mínimo, exclusão social. Senhoras gordas vestirão um avental e organizarão uma cantina pelo Santo Natal, darão sacos de plástico cheios de esparguete barato. As Misericórdias pintarão as paredes de branco, relva plástica no jardim, para animar a vista aos terceiridosos. Bons corações, abrirão os zippers da carteira e deixarão pingar uns cêntimos. Normais procedimentos das consciências incomodadas, o país está a salvo.

Os pobres, de facto, não tem partido. O PCP representa o proletariado, e o protelariado (bela gralha!) goza de diversos serviços e regalias. Dentadura, reforma, dois carros, telemóvel, casinha própria, férias no algarve. O proletariado já não é pobre, apenas remediado. É classe baixa, troca os verbos, fala esquisito, descai-se no palavrão, ou fala como um doutor,com "vocábulos," mas não é assim tâo baixa, é baixa alta alta. De resto as subdivisões maiores em Portugal são na classe baixa.

Enfim, não é isso que nos preocupa agora. O que nos interessa é responder à pergunta: como se chateiam os pobres?

A classe média baixa e média média encontrou maneiras instrutivas de se chatear- passeia o seu tédio por shopping centres, ou reune-se à volta do seu novo carro e depois de passar horas a espadmirá-lo, procede a limpezas intermináveis do carro. Um carro é um objecto que nunca está limpo. Há sempre um resto de lama, de pó, de caca de cão, de asa de traça,algures. Diligentes, eternas e esforçadas limpezas de carro, com uma parafrenália de aspiradores, escovinhas, esponjas, detergentes, formam parte de um chateadouro ocupacional de primeira classe que movimenta largos blocos de fins de semana familiares.

A classe alta média alta, manda o chófer ou a criada limpar o carro, chateia-se nos seu condóminos com segurança à porta, com piscina, com putos a ler Raskolnikiov e a cortar ecstasy. Depois faz visitas aos outros habitantes do condómino, e fica à vontade porque tirando um ou outro pormenor tudo é igual à sua casa. Os mesmos Gonçalos abrem a porta, discretas Mafaldas pegam nos sobretudos. Toda a gente é tio ou tia uns dos outros.
A classe alta alta, que inventou as tias, para chatear a classe média e, por propagação e contágio, as outras, chateia-se com mais estilo, viajando para as novas Nices e Montecarlos, e aprende a chatear-se com os árabes que enchem agora aqueles lugares que dantes estavam cheios de príncipes do Gotha e de boiardos, com alguns discretos aga khans pelo meio, uns milionários americanos e um que outro turbante. Continua a dar alimento a crónicas damásicas, pró e contra,em que com desencantada empatia nos revemos, e troçamos, o chic do desencanto e do eterno enfado não passa de moda. A luneta, o monóculo bem afiado também estão sempre "dans l'ordre du jour" e assim também nunca passam de moda. A bengala de castão tem avatares, bem como o chapéu panamá e o fato de linho branco. Há tempo de poder voltar a ler Tugerniev mas não se faz. Gore Vidal, mas está mal traduzido. Enfim, onde há tempo e lazer e discreto charme de ter a barriga tratada, os carros pagos, o iate a postos e solícitos accionistas, os sentimentos refinam-se, as intrigas amorosas desenvolvem-se, aguçam-se os complots sexuais, apura-se a orgia e sem se comer melhor, lá se vai comendo. A vista para o mar, e verdade, tem arames de cada lado, não vá o novo democrata, o penetra, o arrivista, penetrar nos domínios brilhantes.

Tudo muito bem, esteja-se descansado, não há novidade de maior nessas áreas de todas essas classes. A chatice está de boa saúde e recomenda-se. Resta saber é como se chateiam os pobres? Em todas as classes o chateado solitário, de qualquer classe, é uma avis rarissima. Só se tiver lepra, sida, uma coisa contagiosa, um fedor que afasta os próprios fedorentos. As pessoas, temerosas da solidão, congregam-se para se chatear numa roda de amigos, de colegas, de família. Muitos chateados juntos aprofundam a coisa, dão-lhe uma certa unidade social, formatam-na em pilar do bem estar, ou pelo menos da continuação da serena apatia.

Estando a família pela ruas da agrura, reduzida ao núcleo egoísta da família nuclear, no entanto, ainda parte dela é disfuncionalmente funcional. O fantasma dos avós é uma égregora resistente, que ainda conjuga os restos das famílias em marcha rápida para a unidade autista da família nuclear. Meninos de cara lavada em lágrimas depois de sair dos carros onde estavam amarrados a cadeiras do código,são amarrados no carrinho de rodas, ou então mantidos com trela curta, por pais mais alarmistas do que alarmados, especializados em gritar "Para Aí Não!" e "Olha que Cais!"Nunca, é certo, se viu tanto menino amarrado. É mesmo a era do menino bloqueado, amarrado. Fazem muito bem. Dá segurança. É para o habituar a estar quieto, sentado, colectivo, cooperativo, sentado diante de um computador, de uma secretária, de uma mesa de briefing, de um conselho de administração. Nada cá de meninos à solta porque a horda de casapianos ataca em qualquer esquina.

Enfim, depois de viverem amarrados a uma série de cadeiras do código os miúdos passam a outros exercícios práticos de chatice. Iniciam-se na nobre arte da chatice em segundos andares com rede de galinheiro nas varandas. Se não são segundos andares são vivendas da antiga pequeno burguesia, tipo bairro social, onde vivem alguns pequeno-ricaços que expulsaram os pequeno-burgueses que anteriormente tinham expulso os operários, porque no entender de todos eram casas "boas demais" para os operários. Esses chateadouros de infantes são justamente chamados infantários, embora de certeza nenhum Infante Real, actual ou futuro, virá lá pôr os pés reais. Seja como fôr,há quem,sempre na corrente da modernidade, lhes queira com toda a justeza, e inserção social, chamar-lhes Chatiários de infância.


Mas deixemos as crianças com o seus flautistas de Hamelin, especialistas em tosquiar-lhes o miolo, e adaptá-lo ao milhões de papeladas, de normas civis, de protocolos de Windows, que terão de preencher, e voltemos à vaca fria, aos pobres.

Os pobres, esses espertos ou espectros segundo Raul Brandão - a necessidade faz o génio - encontraram uma maneira grátis de se chatear. Aqui no meu torrão adoptivo, juntam-se aos magotes diante de sítios interessantes como bombas de gasolina, encruzilhadas e coisas no género e sentam-se à beira da estrada, em bancos de madeira improvisados. Um bidon pequeno daqui outro dacolá, táboa por cima, e ficam a ver passar os automóveis o dia inteiro.


Esta forma de se chatear bate a meu ver o novel "Club for Bores", em Nova Iorque. Um sítio todo pintado de cinzento, com móveis cinzentos onde cavalheiros vestidos de cinzento vão lá, não para ler o New York Times, the Book Review ou mesmo o Star Ledger. Mas tão só e apenas para ficarem calados, desfrutando durante longas e aborrecidíssimas horas os prazeres obscuros da eterna chatice.