navegando para Bizâncio
eu sei que de vez em quando metes o jornal no frigorífico, e não é por distração, apenas por puro experimentalismo. Eu também devia fazer o mesmo, e numa lógica invertida guardar a carne entre as páginas de um livro favorito.
Hoje perguntaram-me quantas janelas tem a sua casa? é uma pergunta interessante, se feita de repente, e sobretudo quando não se espera nenhuma resposta além do nosso ar supreso, porque as coisas que nos perguntam nestes tempos acho que nos fazem desparecer debaixo de um dos muitos pântanos lógicos. estamos atolados em pressupostos lógicos. A racionalidade pesa.
Numa dessas camionetas em que gostamos de viajar (quando desligam o ar condicionado, ou quando felizmente este está avariado) às vezes a companhia é estranha. Pescoços que não tem cabeça. Cabeças gordas que não tem corpo. Galinhas sentadas com óculos a esquadrinhar a paisagem. Seres aduncos com focinho de porco a dar de mamar ao reader's digest.
Eu também devia pôr os jornais no frigorífico. Finalmente teria opiniões geladas a propósito de, tudo? Nómenos apenas, depois dos fenómenos? Eu sei que o encontro arrepiante de uma linha do Ulisses com um filet mignon deve provocar qualquer coisa na imaginação morta imagina com que ficámos depois de Samuel Beckett ter entrado ba Lusitânia, na colecção Seuil, comprada no Brito que patinou com uma pneumonia ,antes das traduções azaradas da Assírio, ou aziriadas da Ázaro?
Pois não sei quantas janelas tem a minha casa, nem sei se me interessa saber. É muito mais interessante ter uma casa com um número indeterminado de janelas, e nunca saber o número de portas, quantos metros tem o corredor, de quantos metros podemos cair até nos estatelarmos contra o focinho imundo da actual lusitânia.
Sei muito bem que vivemos tempos deterministas. São agora aos milhares as regras, e atrás delas os ditadores, os microditadores, os minisalazares. Tudo se quantifica, tudo se determina. Uma febre de pôr tudo em ficheiros.
Eu acho piada ao computador que deitei fora e ao ecrâ esventrado. Ambos têem agora um ninho dentro. Formigas saiem pelas teclas do teclado. Sabia-se que o computador tem algo de insecto lógico e previdente, um colector sistemático. os seus pequenos chips, a sua rede de aranhas electrónicas. mas é interessante ver formigas de Lineu a sair pelas teclas.
Quero uma casa com um número incalculável de janelas. Um dia pus-me a ver duas janelas da minha casa e cada uma delas era a aurícula da outra. Não há coisas estáveis, sólidas, fixas. O universo é uma membrana trémula.
Tenho uma cadeira de palha onde me sento para ler o Finnegan´s Wake, que escrevi há quase um século. The nightingale. Mas vou passar a metê-lo no frigorífico ao lado dos gelados do santini. Esta emigração da literatura para dentro do frigorífico tem a ver com a deriva dos igloos ou dos ice-bergs. Sempre confundi uns com os outros. E acho que as casas nómadas nunca tem uma entrada idêntica.
Por isso estou a tratar de pôr ainda mais escadas na minha casa- Uma casa recoberta de escadas e algumas que não vão dar a parte alguma. cada janela é um tijolo do meu labirinto. Perdido em vidro? Talvez à espera de seres vitrificados. Pelo menos estas passagens por mundos inorgânicos tem o seu quê. Entretanto fala-me de todos os submarinos vegetais que conheces. Eu estou sempre disposto a multiplicar o meu número de raízes. A turbina das raízes leva a mundos sem nome, ainda.
Pintura: Jardim das Delícias, de Hieronimous Bosch