J'ai lavé le visage de ton avenir
Henri Michaux
A infância de cada um é um Castelo mal guardado, como históricos ou não, são todos os nossos, de resto. Entra lá todo o tipo de gente. Coveiros ciclícos da literatura, piranhas estéticas, o memorialista morto, o psicólogo do positivo, a baronesa de Ninguém, os novos vegetarianos e os antigos abutres. Ninguém se safa! E toda essa gente e mais outra que faltou enumerar dispersa-se pelo Castelo, escolhe os melhores quartos com vista sobre Sade ou Thanatos, ou sobre Barthes e Theodor Van der Brohm, e enraiza-se de imediato, cresce em força, sigilo e bruteza, depois dá muita parra e tapa os acessos.
Resultado: quando queremos chegar ao Castelo da nossa infância não chegamos. Está tapado até ao último fantasma e ponta de erva por uma gente que não estava lá, que não era de lá, mas que de súbito tomou conta daquilo tudo. Por onde vamos começar? Sobretudo eu, que nunca li o Grand Meaulnes. Tem de haver um fio qualquer, mesmo que seja mau condutor, uma lâmpada de Aladino, mesmo que esta esteja rachada e depois de a esfregar muito saia de lá o sr. Teixeira de Pascoais muito mal disposto com um relâmpago interrompido a entrar-lhe pela cabeça.
O fio pode estar numa percepção que de repente se desdobra até às alturas de uma epifania. Para Proust, dado ao doce, é a madeleine a granada incendiária que deflagra e rompe toda a sobrecasaca do superego que impedia a re-imersão num tempo tão mago que mais nenhum tempo se lhe compara. Para mim, devoto de Mazda, deus do fogo, a minha madeleine é o fumo e o cheiro das castanhas assadas, que electrocutam o sistema de pesos e medidas, de regras e protocolos que devastaram a pouco e pouco o estado esplendoroso da selvagem inocência e da verdadeira eternidade.
Não há infâncias fáceis, os noddys são polaróides suburbanos, não representam nada, a não ser escutismo visual, bondades de cartão com pagela de missa e santinha de olhos em alvo, para o Alto, donde sai luz da companhia, que alguma tia paga. A brigada de ratos mickeys ocupou o meu Castelo. Pior profanou-o, bem como todas as séries da TV, ainda mais sidosas do que as páginas dos meninos exemplares de Madame la Comtesse de Ségur, decerto uma extra-terrestre expulsa do seu planeta natal que eu condenaria a ser alma errante, ad eternam, se de tais meios dispusesse.
Uma infância é um tesouro de execrações, de divinas alergias. Eu por exemplo posto pela primeira vez perante umas primas de imenso brasão, safira azul a pedra de armas, no dedo de unha imaculadamente pintada de vermelho, não pelo vermelho, divinal rubedo! achei-as papagaio. Hoje sei que estava no bom caminho a minha percepção, com um senão, eram papagaias e eram símias. Reproduziam um sistema errado de poder, o que vem do culto perpétuo da aparência.
Nada má a aparência. mas culto? e sem ser wildiano? Porém eu não sabia dizer get lost. Contudo tinha, a meu favor, o riso dos pagãos e dos agnósticos sociais que não medem as pessoas pela carga de Castelo que se lhes vê na cauda (daí a Princesa caudada, a Noiva de Gelo) mas sim pela magia que delas dimana. Daquelas duas primas mascaradas, duas baronesas devotas à canasta e às obras pias, para desenjoar, no entanto, saía Luz. Tinham aura e auréola. Há gurus assim, arrastam incautos. De resto, não dá a tradição popular um brilho de anjo ao Satã da hora e de sempre? Pois eu, então, naquela altura crucial da descoberta das imitações do outro (habilidadezinha nacional disseminadíssima) e que mais tarde leva a que se imite o modelo finlandês, por exemplo) descobri que tinha membros infernais na família visto que o inferno é a imitação do outro, a execução suicida da sua própria originalidade (deicídio cometido por tanto e interminável plagiador do Eça, por exemplo) a traição a si mesmo mais mortífera e corriqueira nestas plagas anedóticas, com parque de estacionamento diante, como se o mar fosse um encenação para bombeiros.
Numa altura, mais tarde, em que lia os Vedas e tinha diante dos olhos as batalhas cósmicas do passado, pensei se essas primas, com luz, e um domínio brilhante, além de uma muito bem imitada aisance e naturel, não seriam Asuras, deuses invejosos sempre em luta com os Devas, deuses mais puros, que trabalharam as vias de Brahma e chegaram quase àquele estado final de total desprendimento e desapego, mas faltou-lhes o que faltava a Mário de Sá Carneiro por outras razões, o Último Impulso para o azul, impulso que teria por força de ser fatídicamente Azul, para se tornarem em bodisatvas com um corpo de arco-íris.
Há batalhas da infância que pelo menos nós, os que sabemos que somos obscuros, ainda continuamos, não só porque há inimigos reais, mas por uma questão de inteireza de si mesmo para consigo mesmo, sem pessoa, colectivo, associação ou causa interposta. Mas há sobretudo aquelas batalhas de que perdemos a memória, mas que continuam actuais. E são batalhas da mais extrema solidão, porque uma criança com talento para a feroz inocência, está sempre só, contra todos e sem limites.
Inutile confuse bataille où tout tombe sans rime ni raison? Em parte isso como qualquer batalha decisiva que abre um terreno novo para uma próxima. Porque toda a infância é guerreira, excepto para os meninos de camisa branca e livro preto na mão, que harpejam os caminhos de não sei que senhor, provavelmente um celenterado, um verme cósmico de bocarra à Padeiro. ou gente vestida de talco e matérias astrais diversas. plumado de cisne, almofada de água de rosas e veludilho, asas de terciopelo. mas ich, criança bárbara, alada pelo vulcão, comedor de enxofre como Arthur, não me revejo nesses tapetes vermelhos. Eu vi logo em pequenino outra dança do ventre. velaram sobre mim estrelas predadoras.